Ficção Científica na América Latina - Andre Carneiro — Depoimento

Ficção Científica na América Latina

André Carneiro



Conferência proferida na terça-feira, 24 de setembro de 1991, às 20h, no Centro Cultural Sudaca, durante a ConSur I, Primeira Convenção de FC do Cone Sul, que contou com a presença de escritores ilustres como André Carneiro, que nos honrou com sua visita como um dos os representantes do Brasil.


A ficção científica é simplesmente um gênero literário. Como o romance psicológico, o “noveau roman”, etc. Não vamos tentar definir aqui o gênero, tarefa didática muito imperfeita e relativa que já foi feita centenas de vezes. Preferimos dizer, sem medo de respostas, que a ficção científica pode ser de boa ou má qualidade. Observação óbvia e evidente que define a literatura mundial de todos os tipos e de todas as épocas. Também nós, autores e leitores de FC, não precisamos suspeitar do fato de que apenas uma percentagem insignificante de publicações de FC em todo o mundo são de boa qualidade, o que também é o caso de toda a literatura e em todos os seus géneros. E por que repetimos essas coisas primárias e indiscutíveis? A razão também vem de um fato incontestável. O gênero literário da FC vem sofrendo sérios preconceitos por parte de críticos e estudiosos em geral desde o início. Já tentamos identificar as raízes deste preconceito em artigos e conferências. Não temos tempo agora para penetrar melhor neste curioso aspecto dos rótulos, como as comunidades escolhem certas palavras-chave, como DROGAS, COMUNISMO, NEUROSE, transformando-as em recipientes onde tudo o que não é apreciado fica escondido, porque têm medo, ou não, não entendo. Eles querem analisar...

“Admirável Mundo Novo” de Huxley e “1984” de Orwell, sem o rótulo CF, são discretamente apreciados pelos professores de literatura. "Crime e Castigo" de Dostoiévski e alguns romances de Simenon não são incluídos como "romances policiais" porque são bons, assim como o vinho e o uísque escocês não são considerados "drogas", embora o sejam cientificamente.

Seria interessante mencionar também o fenômeno da história em quadrinhos moderna, que adquire uma sofisticação estética, uma temática original e até hermética, que só se encontra nas pastas de alguns estudantes universitários. O gênero literário FC, nome impróprio que, infelizmente, não pôde ser alterado, reúne em seu mundo características especiais que outros gêneros não possuem. O fenómeno dos “fanzines”, por exemplo, aquelas revistas corajosas e por vezes excelentes, feitas sem ambição de lucro e certeza de preconceito, atinge uma dimensão e influência que não vemos paralela em outros tipos de literatura. Alguns autores norte-americanos já afirmaram a grande influência que sofreram destas revistas e dos “fãs”, leitores exigentes e participantes, que comunicam com os seus autores preferidos muito mais do que admiradores de outros géneros literários. É perturbador ver como as elites da inteligência ainda são reguladas pelo pensamento dos últimos séculos. Alvin Toffler classificou este descompasso como “o choque do futuro”, a incapacidade de absorver as contínuas inovações ideológicas e técnicas que a humanidade está criando cada vez mais rapidamente. O antiquíssimo modelo da Terra como centro do Universo e do ser humano como rei da criação, bem compreensível antes de Galileu, ainda é, inconscientemente, a base do pensamento humano. Se este facto é compreensível entre a maioria sem instrução, torna-se um paradoxo quando se trata de intelectuais, que escrevem os seus trabalhos num computador mas não conseguem perceber que uma realidade virtual do futuro já aconteceu hoje, e só CF teve a sensibilidade para incorporá-lo na arte literária.

Já li inúmeras vezes que a FC é um fenômeno tipicamente norte-americano e secundariamente inglês. Entretanto, quando se fala de arte em geral, as estatísticas não devem dar a palavra final. As artes plásticas japonesas foram desprezadas durante séculos, assim como os africanos primitivos com as suas esculturas, que só foram redescobertas e valorizadas por Picasso. As listas dos melhores autores de FC incluem apenas nomes americanos e ingleses. E no mundo oriental, na América Latina, não se escreve Ciencia Ficción? Sim, embora muito menos do que nos Estados Unidos. Mas ninguém duvide que, na arte, o que conta é a qualidade e não a quantidade. Se destaco o absurdo dos críticos literários que apenas excepcionalmente comentam uma obra de FC, também é necessário notar que muitos dos nossos colegas que analisam a FC se esquecem de colocar os autores sul-americanos nessas listas dos “mais importantes”. Não esqueçam que sou brasileiro e que descrevo uma realidade brasileira. Sinceramente não sei (e gostaria de saber) se estas injustiças também ocorrem em outros países latinos.

Por tudo isto, é inevitável que os autores sul-americanos sonhem com o mercado norte-americano, não só pelo prestígio, mas pela possibilidade de ganhar dólares; esperança verde que nenhum escritor idealista despreza.

Pela minha experiência pessoal, publicando trabalhos nos Estados Unidos, Europa, Japão, etc., posso dizer que não basta ter, por exemplo, uma história publicada na mais importante antologia de ficção científica norte-americana para que o caminho se abra. Frederik Pohl, um conhecido autor e editor, disse-nos literalmente que os leitores americanos estão interessados apenas na ficção científica americana. A afirmativa parece dogmática e exagerada, mas traduz uma verdade. Acredito que, basicamente, não são os leitores americanos que nos deixam de lado, mas principalmente os editores. Não esqueçamos que o mercado literário norte-americano é o que oferece maiores possibilidades de lucro e torna possível o sonho de uma obra ser vendida para o cinema, o que significa acabar definitivamente rico. Também não se esqueça que é exatamente por isso que vêm interessados de todo o mundo, ávidos por serem traduzidos e publicados nos Estados Unidos. Você, que fala espanhol, é mais feliz que nós, brasileiros. Na Universidade do Arizona, onde dei algumas aulas, para cada 200 alunos de língua espanhola havia apenas 20 ou 30 alunos de língua portuguesa. Recentemente, em Miami, encontrei numa rua um surpreendente cartaz publicitário que dizia: “Você também pode aprender inglês”.

A “vingança de Montezuma” já não é a da anedota, que consistia em intoxicar os turistas norte-americanos com água, mas sim dominá-los pela linguagem, aos poucos...

Quando destaquei que a comunidade de leitores e “fãs” de CF constituía um grupo entusiasta e participativo, não me referia a um aspecto negativo. Todas as exclusividades e fanatismos conduzem a uma visão unilateral e imperfeita dos factos. Aqueles que “colecionam” a FC livro por livro de cada série, sem dar muita importância ao conteúdo e ignorando as obras primordiais de outros gêneros, não contribuem para o desenvolvimento da FC de forma eficiente, nem expandem sua própria cultura e visão. Não deveríamos fazer do gênero ficção científica um gueto onde os padrões de julgamento permanecem em nossas próprias paredes. Não precisamos de limites artificiais quando fazemos literatura. Quem está dentro da FC e também quem está fora às vezes não tem consciência de que a literatura tradicional tem uma limitação de tempo e espaço, e seus emaranhados só estão localizados na Terra, do passado até hoje.

A FC é muito mais ampla e revolucionária, porque pode avançar no espaço e para o futuro, cada vez mais próximo, devido à progressão geométrica do desenvolvimento da ciência.

Uma das razões mais óbvias pelas quais a FC assusta alguns leitores é o fato inevitável de que ela requer cultura, ou, pelo menos, uma riqueza de informações sobre o mundo moderno que o analista de Shakespeare, Cervantes, Dostoievski, etc., não precisa. Os falsos intelectuais ainda contemplam o céu e admiram luzes distantes e quase duvidam que o homem já tenha pisado na Lua, e só conhecem Miranda como personagem de Shakespeare, embora ela já tenha sido claramente fotografada como satélite de Urano. Esses antiquados estão nervosos com as possibilidades da realidade virtual dos computadores e gostariam, talvez, de voltar antes de Galileu e Copérnico para recuperar os títulos de reis do Universo.

Se forem limitados devemos ser amplos, ecléticos e, porque não, cósmicos. Mas essa amplitude deve incluir a solidariedade cultural entre os povos da América Latina. Se a língua espanhola invadiu o sul dos Estados Unidos, a minha língua portuguesa é tão desconhecida no mundo quanto a língua tupi-guaraní dos nossos índios, da qual eu e todos os brasileiros ditos civilizados também desconhecemos.

Infelizmente, estamos sendo vítimas, no Brasil, de uma influência norte-americana muito preocupante. Os indicadores externos desta influência são muito expressivos. Todas as camisetas com ilustrações e frases vendidas no Brasil possuem expressões em inglês. É triste ou irônico encontrar crianças subnutridas, habitantes sujos de nossas favelas, vestindo camisetas da “Universidade da Califórnia” como se fossem ex-alunos. Escrevi protestando contra a invasão que a língua inglesa fez em nosso país. Já não se escreve "Parking Beach" mas sim "Estacionamento". Já não temos “Exposição de Produtos” mas sim um “Show-Room”. Os nossos “Centros Comerciais” utilizam a língua inglesa numa percentagem que chega aos noventa por cento. Nossos jornais destacam e comentam a literatura estrangeira em mais de oitenta por cento de seu espaço. O maior jornal brasileiro de circulação, a "Folha de São Paulo", possui um suplemento dedicado aos adolescentes com o título "Teen" (adolescentes). Recentemente dedicou um de seus suplementos à FC brasileira. Mas os maiores espaços foram dados aos autores norte-americanos. E você perguntará: qual é o espaço dado ao resto da literatura latina? A resposta é triste. Se a nossa literatura nacional ocupa um espaço muito pequeno, a sua é praticamente ignorada. Este fenômeno de separação entre o mundo de língua espanhola e o brasileiro é muito estranho. Tive um amigo na Universidade do Arizona que ensinava literatura sul-americana. Descobri, para meu horror, que a literatura brasileira não estava incluída no programa. Mas também descobri que ignorava completamente o que havia de bom na arte literária dos países de língua espanhola. Ainda não sei dizer por que razões sociológicas existe esta separação injusta e qual de nós é mais culpado. Sei que no Brasil os melhores autores argentinos chegam até nós pela Europa, principalmente franceses. Há um ano, na cidade de São Paulo, foi construído um grande centro cultural denominado “Memorial da América Latina”. Algumas manifestações artísticas de países vizinhos foram patrocinadas pelo governo brasileiro, mas ainda é uma conquista muito modesta.

Qualquer “fã” brasileiro de ficção científica pode citar rapidamente bons autores norte-americanos, mas teria dificuldade em citar apenas um latino-americano.

Recentemente Scott Card, um conhecido autor americano de ficção científica que viveu alguns anos no Brasil, afirmou em um artigo que os autores brasileiros de ficção científica tiveram que criar seu público brasileiro sem pensar nos Estados Unidos. Em outras palavras, a mesma coisa que Frederik Pohl diz; o que significa mais ou menos que, embora nós, latinos, possamos escrever grandes romances, eles não estão dispostos a nos ceder seu rico terreno. E o que estamos fazendo em troca? Nada, ou quase nada.

Como as artes na América Latina sempre rendem muito pouco dinheiro, esse raciocínio de mercado comprador e vendedor permanece muito distante nas mentes idealistas dos escritores. Todos nós queremos ser autores de obras-primas, o que é excelente, mas pouco nos importamos se o nosso trabalho será vendido ou não, o que nos obriga a ter outras profissões para continuarmos como escritores.

Acredito que seja a primeira vez que autores e editores brasileiros participam de um Congresso internacional de FC na Argentina. Que a magnífica cordialidade com que nos acolhe seja um ponto de partida não só para o nosso conhecimento pessoal, mas também para criar um maior intercâmbio entre nós. Meu pai era espanhol e se eu tivesse que escolher outro idioma para influenciar minha língua brasileira preferiria o espanhol e não o inglês.

Temos o grande privilégio de compreender facilmente o espanhol. Neste mundo moderno de transformações fantásticas, a Europa que aboliu a Cortina de Ferro e se uniu brevemente no Mercado Comum Europeu deverá servir de exemplo para uma maior união que beneficie a todos nós.

Vamos estabelecer, mesmo que apenas simbolicamente, neste encontro de escritores e fãs de FC, um Mercado Comum da Literatura de FC na América Latina.

Se os outros, aqueles que não sabem o que é FC, protestam, exactamente porque não o sabem, podemos responder que a Literatura Tradicional, queira ou não, vai cair nos braços da FC, porque numa em pouco tempo será impossível escapar desse cenário cibernético onde vivemos e onde criamos a nossa arte.

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Tradução: H. A. Schmitz (com AI)


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