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DISTRITO FEDERAL, romance de Luiz Bras — Resenha Crítica



BRAS, Luiz. Distrito Federal. São Paulo, Editora Patuá, 2014. 280 págs. Ilustrado.

     Luiz Bras é um heterônimo. De quem, não interessa agora, pois ele está vivo e atuante e não queremos atrapalhar isso. Só me arrisco a revelar que este não é o seu único heterônimo. O que é ótimo. Segundo a pequena biografia em seu livro, nasceu em 22 de abril de 1968, em Cobra Norato, pequena cidade da mítica Terra Brasilis (sic). Atualmente reside em São Paulo. É ficcionista e coordenador de laboratórios de criação literária. Lançou o livro de contos Paraíso Líquido em 2010 e no ano seguinte um livrinho mágico de ensaística autocrítica: Muitas Peles, inteiramente dedicado à ficção científica no Brasil. Em 2012 o romance Sozinho no Deserto Extremo e no início de 2014 publicou também o livro de minicontos Pequena Coleção de Grandes Horrores.
 
    
     Distrito Federal é um livro de capa dura e com 280 páginas, o tipo de livro que para em pé sozinho. Folhando-o ao acaso, se nota uma tipografia e uma estética única. É de uma arquitetura telegráfica, em staccato, como uma epopeia, uma ode, ou um cantares, uma obra que certamente conterá maravilhas... 

     Pois foi justamente assim que me aconteceu... Sinceramente, tive um sobressalto quando comecei a lê-lo. É um livro de difícil classificação, pois ele se encaixa em diversas situações literárias, tanto como um longo poema, ou um romance, dependendo muito da visão do leitor e também da maneira como se o lê.

     O centro nervoso do livro é a corrupção e o encanto midiático gerado em torno dessa praga disseminada hoje em todo o Brasil. É assim que alguns seres mitológicos do nosso folclore, cybermutantes, de um jeito meio alienígenas, comandados por um curupira elétrico de uma extrema capacidade olfativa, e um bando de sacis malucos, auxiliados por boitatás, cucas, entre outros, que perseguem políticos corruptos e empresários corruptores, freneticamente, e logo passam a executá-los, com inúmeros requintes de crueldade, conjuntamente a uma facção secreta de humanos auxiliares que se intitulam a Máquina Macunaíma e são convocados para a vingança do povo idiotizado. Aí começa a carnificina. À medida que se avança na história, há mais e mais requinte nessas execuções, com verdadeiras instalações e performances de horror, onde se retalham governadores, secretários de educação, secretários de saúde, nos saguões de hotéis em Fortaleza, Porto Alegre, ou Manaus... Há sempre mais e mais visibilidade nas notícias internas da história, pois o livro tem uma espécie de agência noticiosa que vai contabilizando as execuções e narrando os detalhes mais sórdidos; é um emaranhado tupinipunk, que vai levando o leitor pela alta esfera vertiginosa dos políticos, socialites, âncoras de jornais, e até uma espécie de alter ego do próprio leitor, com uma vozinha fina, intimando uma participação com conselhos e ironias bem apropriadas.

     Classificar Distrito Federal como uma ficção científica de raiz, poderia ser comprometedor, hesito em fazer isso, pois a história é narrada com muitos elementos da ficção científica próxima do subgênero cyberpunk, mas tem algo na forma como o autor apresenta a questão que transcende o gênero, que o eleva ao nível de um surrealismo tupicyberpunk, e essa imersão num certo ciberespaço, na brain-net como o autor define, com esses personagens-espíritos clamando vingança, que são mais como avatares de um ambiente virtual do que seres tangíveis, não nos leva efetivamente a uma transcendência espaço temporal no imaginário da FC, mas se revela como uma importante reflexão em torno da ética, do humanitário, das manipulações de massa e dos jogos de poder. E eu vejo aí mais um hiper-realismo que um futurismo, uma fenomenologia emblemática do vingador, desencadeada na hora da leitura, por um curupira assassino inconsciente, que irá fazer a sua justiça na mesma intensidade e crueldade desses podres poderes. E assim, o leitor tem uma espécie de vingança pessoal com essa leitura.

     Em relação à estilística, a obra possui uma escritura cíclica, há uma divisão em células temáticas, que se aderem uma às outras por contato, com a repetição de algumas sentenças, como o rodopio de um curupira, que vai revelando mais e mais fatos relacionados entre si. O que aproxima muito o texto da poesia, do poema em prosa e também do fluxo de consciência.

     Outro encanto do autor é o uso da segunda pessoa, para nos colocar dentro do livro, como um leitor personagem que sai do texto. Para exemplificar melhor vou mostrar um pequeno trecho:

     (...) Se você calar a cacofonia que agita teus pensamentos, logo notará o sussurro que viaja no labirinto de canos & fios atrás das paredes. (p.212).

     O livro tem algumas ilustrações como essa da capa, realizadas por Teo Adorno, com a estética do recorte, das montagens psicodélicas de um curupira destruidor que vai deixando o seu rastro com pedaços de órgãos, de vísceras, de corações retalhados, e de símbolos cabalísticos, em forma de estratos antropomórficos dessa realidade alternativa que nos mostra o romance. Essas ilustrações são como um respiro visual na densidade temática da obra, pausa, às vezes, necessária nessa leitura.

     Portanto, Distrito Federal não é um livro do tipo fácil de ler, sua temática, seu estilo, sua ficção científica, são peças que precisam ser remontadas na mente do leitor, e nem todos gostam de ir tão ao fundo nas ideias, entretanto, aos leitores privilegiados que imergirem nesse Distrito Federal, com certeza serão recompensados na medida certa, terão um mapa completo da podridão existencial em que está a política brasileira, a mídia nacional e o completo abandono do indivíduo pensante.
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Herman Augusto Schmitz
Mestre em Letras (UEL)

As Três Leis da Integridade Criativa — Luiz Bras

As três leis

As três leis a seguir — Leis da Integridade Criativa — foram feitas por mim, para mim. São de uso pessoal. Mas não me espantarei se um grupo grande de escritores também decidir assumi-las para si.

1ª lei: Escrever apenas o que me dá prazer escrever.
2ª lei: Escrever textos com alta densidade poética, exceto quando isso contrariar a primeira lei.
3ª lei: Agradar o maior número possível de leitores, desde que tal desejo não entre em conflito com a primeira ou a segunda lei.

Um breve comentário sobre cada uma das leis precisa ser feito.

1ª lei: Escrever apenas o que me dá prazer escrever.
Muitas vezes um jornal, uma revista ou um editor que planeja publicar uma coletânea temática convidam o escritor para escrever um conto ou um poema. Mas, se o tema proposto não estiver sincronizado com a rotina criativa do escritor, ou se o prazo for pequeno, ou se o estilo já estiver pré-definido, a escritura pode ser muito penosa. Se você não estiver curtindo escrever, não continue. As chances de que o texto saia com problemas é grande. Então, diante da queixa do Leitor Qualquer Que Seja, você não poderá sequer responder que escreveu por puro prazer.

2ª lei: Escrever textos com alta densidade poética, exceto quando isso contrariar a primeira lei.
O objetivo maior da literatura não é apenas entreter e deleitar. É também, e principalmente, provocar e inquietar o leitor. Não existe boa literatura fácil de ler. As obras-primas, mesmo as do presente, sempre exigem um pouco de esforço. Isso não significa que quanto mais hermética e obscura melhor. No equilíbrio entre a forma e o conteúdo está todo o segredo de um bom texto literário. Mas toda essa discussão é inútil e idiota se, pra atender a uma demanda ou agradar alguém (os leitores, os intelectuais, a crítica), o escritor não estiver escrevendo o que verdadeiramente gosta de escrever: textos obscuros e cifrados, textos claros e luminosos, qualquer outra coisa entre um e outro, de acordo com sua inclinação.

3ª lei: Agradar o maior número possível de leitores, desde que tal desejo não entre em conflito com a primeira ou a segunda lei.
O escritor precisa de leitores. Isso é inegável. Ninguém escreve para si mesmo, ou para a gaveta. Tentar cativar o maior número possível de leitores é um propósito legítimo. Vender cem mil exemplares, um milhão, oh, que destino glorioso. Desde que esse não seja o primeiro objetivo do escritor. Na verdade esse tem que ser o último objetivo. No fim das contas, não existe escritor sem leitor. Vivemos numa época em que as mais diferentes tendências literárias convivem pacificamente. A obra tanto do Escritor Hermético quanto do Escritor Não-Hermético, e dos vários matizes que ligam um ao outro, sempre encontrará quem a aprecie.

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Fonte: BRAS, Luiz. Muitas Peles. São Paulo, Terracota, 2011. (Pág. 66-68)

Luiz Bras - Estou vendo o futuro. Consegue ver também?


Estou vendo o futuro. Consegue ver também?

Vejo, com os olhos de Aldous Huxley, uma sociedade em que os valores morais e religiosos são bem diferentes dos nossos. Nesse mundo organizado em castas, o conceito de família não existe. Engravidar é algo obsceno e impensável. Ter uma crença religiosa é um ato de ignorância e desrespeito aos outros. Vejo cidadãos condicionados biológica e psicologicamente a viver em harmonia, respeitando todas as leis sociais.

Vejo, com os olhos de George Orwell, uma sociedade em que o Estado é onipotente, onisciente e onipresente. Vejo uma força opressora capaz de alterar a História e o idioma, controlar a mente das pessoas e travar uma guerra sem fim, com o objetivo de manter sua estrutura inalterada. Vejo nas residências, nas repartições públicas e nos restaurantes uma tela através da qual o Estado vigia cada cidadão.


Vejo, com os olhos de William Gibson, uma sociedade altamente tecnológica e multifacetada, em que o mundo real e o virtual se misturam. Vejo as grandes corporações dominando continentes inteiros e se devorando mutuamente. Vejo anti-heróis com próteses neurológicas, mergulhando, amando e morrendo no caos fosforescente do ciberespaço. Tudo é dinamismo e sinestesia, tudo é troca de informação e impulsos elétricos.


Vejo, com os olhos de Orson Scott Card, uma sociedade em que as crianças intelectualmente mais bem dotadas são monitoradas dia e noite pelas autoridades. Vejo as melhores dentre elas vivendo anos longe de casa, numa estação orbital, sofrendo um brutal treinamento de combate. Sua inocência não existe mais. Melhor dizendo: quase não existe mais. Pois esses cadetes-mirins superdotados sempre encontram meios de protegê-la do darwinismo militar.


Sentado no ombro desses gigantes, dá até para ver alguma coisa com meus próprios olhos. Agora eu vejo. Nem distopias nem utopias, apenas sociedades possíveis. Falíveis, espantosas, sublimes e injustas como todas as sociedades humanas.


Você também vê? Veja com seus próprios olhos. Pense no futuro. Mas, se achar tudo isso muito perigoso, você pode fazer como o cientista mais pop da História, Einstein, que certa vez resmungou: "Nunca penso no futuro, ele chega rápido demais".


LUIZ BRAS
Final da crônica "Escolha um Futuro", do livro "Muitas Peles" 2011 - Terracota Editora, SP.

SÃO PAULO, 31 DE JULHO DE 2013 - Luiz Bras (Conto)


Conto de LUIZ BRAS, cedido pelo autor, da sua antologia PARAÍSO LÍQUIDO, 2010.

Este conto rápido, escrito na melhor tradição epistolar da ficção científica, de excelente bom humor e que vem desafiar a nossa credibilidade, foi lançado primeiramente, numa coletânea intitulada Cartas do Fim do Mundo, lançada em 2009, onde cada autor foi convidado a escrever uma carta tratando do tema apocalipse.


* * *


SÃO PAULO, 31 DE JULHO DE 2013
 


Jonas, não entre em pânico, respire fundo.


Você não tem muito tempo, o taxímetro está correndo. Os próximos três anos e meio vão passar muito rápido. É indispensável que [trecho ilegível]. Mesmo assim, sei que você precisará de pelo menos uma semana pra assimilar esta carta. Sua primeira reação será imaginar que se trata de uma brincadeira de mau gosto. Isso é o que eu imaginaria se estivesse no seu lugar. Uma piada bem elaborada, mas cretina. Tudo o que eu peço é que não perca mais de uma semana interrogando os colegas e os parentes, procurando digitais, testando o papel e a tinta, dormindo mal, comendo mal. Apesar de eu não ter como provar (estou sozinho e não há tempo!), acredite em mim: esta carta é verdadeira. Não reconhece a letra? Você mesmo a escreveu. Não fique repetindo infinitamente os mesmos exames, não passe dias no laboratório. A grafia é tua, a assinatura também. Repito: este alerta foi escrito por você. Não hoje, não ontem. Três anos e meio no futuro. Eu sou você. Se aceitar esse fato e mantiver a cabeça fria, talvez você consiga salvar algumas vidas. Incluindo a tua (nossa).

Sei que eu sou a última pessoa na face da Terra de quem você esperaria receber notícias. Mas, como eu disse, não deixe de comer ou dormir por minha causa. Não fique investigando os amigos e os desafetos, imaginando que esta carta é uma brincadeira de extremo mau gosto. Não tente descobrir quem é que está sacaneando você. Porque ninguém está sacaneando você. Acredite, no período de três anos e meio que nos separa, a vida ficou muito complicada. Eu não escreveria esta carta se houvesse outra forma de salvar a humanidade. Ou parte dela.

[Trecho ilegível.] Como daqui a quinze minutos eu estarei morto, vou direto ao ponto: em três anos e meio, se não houver um modo seguro de chegar a Marte e criar a toque de caixa uma colônia auto-sustentável, você vai morrer de maneira dolorosa. Você e quem mais estiver por perto. Sei que está pouco se lixando para o resto do país ou do planeta. Você é um incurável egoísta, sempre foi. Tão incurável que eu mesmo continuo não dando a mínima para os outros. Mas, acredite, você vai precisar de ajuda, de muita ajuda, se não quiser virar pó (eu não quero!). Enfia isso na tua cabeça: Marte. Temos que ir pra lá. Não, não discuta comigo. Sei que a lua está mais perto, mas não adianta. Só estaremos a salvo em Marte.

Se nada for feito, [trecho ilegível]. Se você não acreditar em mim, a extinção da vida na Terra acontecerá da seguinte maneira: em janeiro de 2012, insetos inteligentes ocuparão as principais capitais do mundo. De onde surgiram? Ninguém sabe. Enquanto as nações mais desenvolvidas estão preocupadas com o aquecimento global, cupins (Cryptotermes brevis) e baratas (Periplaneta americana) com QI em torno de duzentos vão tomar conta das regiões urbanas. [Trecho ilegível] será impossível. Apesar do susto, no início a convivência entre nós e eles será pacífica. A curiosidade científica falará mais alto. Trocaremos experiências e informações. Mas em seis meses esse namoro vai terminar de modo violento. Logo ficou claro que duas classes tão diferentes de seres vivos jamais conseguiriam dividir o mesmo espaço. Então teve início a guerra.

Em janeiro de 2013, metade da população humana já terá sido dizimada. Assustador, não? Isso não significa que estamos perdendo a guerra. A população global de insetos também caiu pela metade, atingida por bombas e pesticidas de última geração. Mas uma série de mutações genéticas resultará numa espécie prolífera e superconsciente de trepadeira (Clytostoma binatum), que se espalhará pelos cinco continentes. Logo homens e insetos terão que se haver com outro inimigo, num ménage à trois belicista. Porém em seis meses as três famílias serão surpreendidas por uma pane, vamos dizer, geológica. O que é isso? Mais ou menos como se todos os minerais do planeta, insultados pela violência irracional de homens, insetos e plantas, decidissem pôr fim à barbárie. Vulcões entraram em erupção. Furacões, terremotos e maremotos estão sacudindo a biosfera. Se me confundo com os tempos verbais (escrevendo ora no passado ora no futuro), é porque, preso neste bunker e à beira da morte, está sendo difícil manter a coerência.

Três dias atrás aconteceu algo mais assustador ainda. Um fenômeno absolutamente assombroso. Nem sei como explicar. Um vírus de computador. Ou algo parecido. Prepare-se, esse vírus vai se espalhar por todo o ciberespaço e contaminar pessoas, insetos e plantas. Isso mesmo: pessoas, insetos e plantas. Estamos todos contaminados. Febre, náusea e fotofobia. Delírios e alucinações. Talvez fosse mais acertado falar em câncer. Estamos todos definhando da forma mais cruel. Estamos [trecho ilegível]. A doença danificou nossos sistemas de comunicação. Tevê, rádio, cinema, telefone, internet, livros, revistas, jornais, um horror. Mas a metástase foi mais ampla, comprometendo também o sistema nervoso das pessoas. Já não consigo distinguir a fantasia da realidade. Sinto que minha mente e toda a informação transmitida por cabo ou via satélite estão entrelaçadas. Personagens de antigos desenhos animados, liderados por Pernalonga, esmurram a porta do bunker. [Trecho ilegível] tenho só uns cinco minutos, antes que Superman abra um buraco na parede à prova de cataclismo.

Essa é a situação hoje. Não duvide, o que eu acabei de revelar VAI acontecer. O fim do mundo já tem data certa: 31 de julho de 2013. Daqui a pouco eu estarei morto. Por isso esta carta. É preciso que você mude o futuro, só assim eu e você sobreviveremos. Não dá mais tempo de impedir o surgimento dos cupins e das baratas inteligentes. Eles já estão aí, conspirando nos esgotos, nos subterrâneos, escondidos. A guerra que virá é inevitável. Também não dá mais tempo de impedir a aparição das trepadeiras superconscientes (sensitivas) ou a pane geológica ou o câncer das telecomunicações ou a histeria coletiva ou [trecho ilegível], não dá, não dá. Tudo isso já está orquestrado e vai acontecer mesmo que você, o papa, a Madonna e a ONU tentem evitar. Mas ainda dá tempo de começar a pôr em prática um plano de fuga. Não hesite, não contemporize, não tergiverse. Faça exatamente o que vou dizer.

Esqueça as aulas de química e o laboratório, esqueça [trecho ilegível], nada disso terá utilidade. Concentre-se na arte de seduzir e influenciar as pessoas, também chamada de política. Ou religião.

Primeiro você precisará aliciar e doutrinar três secretários. Isso levará seis meses. Em seguida cada secretário formará três superintendentes. Isso levará três meses. Você e os três secretários aliciarão e doutrinarão as dez pessoas mais ricas do mundo enquanto os nove superintendentes coordenarão a construção de um estaleiro secreto. Isso levará mais três meses. Cada uma das dez pessoas mais ricas do mundo criará e administrará uma empresa de mil funcionários. Cada empresa ficará responsável por um setor relevante para a missão: engenharia, energia, informática, astronáutica, meteorologia, medicina, agricultura, pecuária, psicologia e (muito importante, acredite) astrologia. Isso levará mais seis meses. Não preciso repetir que toda essa atividade terá que ser realizada em absoluto segredo, preciso? Em um semestre, a partir desse momento, insetos inteligentes ocuparão as principais capitais do mundo (eu disse isso no começo). Então você, os três secretários, os nove superintendentes, os dez magnatas e os dez mil funcionários terão seis meses pra ocultar totalmente o estaleiro. Como? Camuflagem. Na verdade, supercamuflagem. Serão sete camadas. [Trecho ilegível] cada estrato. Primeiro uma cúpula de titânio e kriptonita (contra a visão de raios X). Revestindo-a, uma camada de papel-alumínio non plus ultra (contra a transmissão de pensamento). Revestindo-a, uma camada de isopor radioativo blasé (contra os satélites espiões). Revestindo-a, uma camada de esterco desidratado de lhama (contra os cães farejadores). Revestindo-a, uma camada de fibra de vidro mata-mosquito (contra o transtorno bipolar). Revestindo-a, uma camada de palha de aço cão-tinhoso (contra calúnias e difamações). E finalmente, revestindo-a, uma camada bem grossa de alho húngaro triturado (contra feitiços e mau-olhado).

A partir de janeiro de 2012, como eu disse, o mundo começará a sofrer transtornos graves e o equilíbrio [trecho ilegível]. É importante que você, os três secretários, os nove superintendentes, os dez magnatas e os dez mil funcionários estejam a salvo no estaleiro secreto, trabalhando intensamente na nave que levará todos nós a Marte. Os últimos boletins recebidos hoje informaram que [trecho ilegível], a magnetosfera foi comprimida e a distribuição de partículas energéticas foi drasticamente alterada. Também informaram que a lua está se aproximando da Terra, alterando o regime das marés. Em breve o campo gravitacional do nosso planeta fragmentará a lua. Milhares de asteroides se chocarão com a Terra. Por isso eu disse: vá pra Marte.

Você não tem muito tempo, o taxímetro está correndo. Os próximos três anos e meio vão passar muito rápido. Superman, Pernalonga, [trecho ilegível], Snoopy e Mafalda já estão quase entrando. Enviar esta carta será certamente meu último gesto. Um gesto esperançoso. Meu tempo acabou. Sei que você precisará de pelo menos uma semana pra assimilar esta carta. Sua primeira reação será imaginar que se trata de uma brincadeira de mau gosto. Mas eu juro que se nada for feito, se você não acreditar em mim, a extinção da vida na Terra começará em janeiro de 2012, com a invasão dos insetos. Então, seja inteligente. Lembre-se da Aposta de Pascal:

Partindo do pressuposto de que você não sabe se esta carta é verdadeira ou falsa, há uma probabilidade de cinquenta por cento pra cada possibilidade. Se a carta for falsa, em janeiro de 2012 os insetos não aparecerão e você terá perdido dezoito meses de sua vida, organizando uma desnecessária e ridícula expedição a Marte. Sua perda será relativamente pequena: a execração pública, o [trecho ilegível], só isso. O povo tem memória curta, em pouco tempo tudo estará esquecido. Ufa. Ninguém morrerá, principalmente você. Porém, se a carta for verdadeira, em janeiro de 2012 os insetos aparecerão e você terá trabalhado dezoito meses num projeto valioso que dois anos depois salvará sua vida e a minha. Pense nisso. Mas não demore muito pra fazer a aposta certa. Meu tempo acabou. Merda. Superman e Pernalonga já [trecho ilegível]

Jonas


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Luiz Bras nasceu em 1968, em Cobra Norato, MS. É escritor e doutor em Letras pela USP. Já publicou diversos livros, entre eles Sozinho no deserto extremo (romance), Paraíso líquido (contos), Muitas peles (artigos e ensaios), Sonho, sombras e super-heróis e Babel Hotel (romances juvenis) e, em parceria com Tereza Yamashita, os infantis Dias incríveis, A última guerra e Ganhei uma menina!

Colabora regularmente com a Folha de S.Paulo, resenhando lançamentos do mercado editorial. Mantém uma página mensal no jornal Rascunho, de Curitiba, intitulada Ruído Branco. Também mantém o blogue ObjetoNãoIdentificado: http://luizbras.wordpress.com

Em 2013, foi um dos setenta escritores da delegação brasileira que participou da Feira do Livro de Frankfurt.

O romance Sozinho no Deserto Extremo será publicado na Alemanha, em 2014, pela Arara Verlag.