Mostrando postagens com marcador Ray Bradbury. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Ray Bradbury. Mostrar todas as postagens

O Canon dos Prefácios em Ficção científica — Ray Bradbury



Prefácio

A nave da melancolia

Ray Douglas Bradbury nasceu em 1920 em Waukegan, Illinois, nos Estados Unidos. Condensada em poucas palavras, essa informação, contudo, é fundamental para compreender alguns aspectos marcantes da obra desse escritor, mundialmente conhecido e tão ligado às lembranças de sua infância.

Bradbury tem uma obra vastíssima que inclui contos, romances, peças de teatro, rádio, televisão, poesia, fábula, antologias, literatura infantil, obras de não-ficção e roteiros de filmes, entre os quais o de Moby Dick, baseado no romance de Hermann Melville. Dirigido por John Huston, com quem Bradbury teve um relacionamento difícil, o filme foi lançado em 1956 com o sucesso que a premiação do Oscar só viria reforçar.

Por paradoxal que pareça, mesmo em seu romance mais conhecido, Farenhiet 451, de 1953, que ele próprio aponta como sua única obra verdadeiramente de ficção científica, há em sua literatura uma marca indelével de melancólica saudade que subsume a linearidade do tempo e reúne o passado e o futuro em um presente constante e poético de ausências.

Contador de histórias, como ele mesmo se classifica, escrevendo durante mais de sessenta anos um conto por semana, segundo uma metodologia obstinada de trabalho, a poesia, não só como forma, mas também como atitude expressiva, constitui uma marca característica de sua prosa, a ponto de ter formado, logo no início de sua carreira, a reputação de “poeta dos pulps”.

Se o poético de sua obra não o incomodava, antes, ao contrário, era por ele cultuado, o fato de ser tido como um autor de ficção científica sempre o motivou a procurar romper os limites desse enquadramento e a buscar ser visto como um autor de literatura, independentemente dos cenários e das fantasias com que vestiu os ambientes de suas histórias e os personagens de suas narrativas.

Não que não prezasse, e muito, os heróis de sua infância e juventude — Tarzan, Buck Rogers, Flash Gordon, entre outros —, não que não reconhecesse a marca de origem de sua literatura, misturando gêneros — fantástico, mistério, realismo, gótico, ficção científica —, e a ela fosse reconhecido pelo caminho que lhe abriu e lhe permitiu trilhar.

Mas queria, desde o começo, ser um autor universal, sem restrição de gênero, de geografia, de língua, de compartimentação literária.

Desde a publicação de seu segundo e um de seus mais conhecidos livros — Crônicas marcianas, 1950 —, ele insistia, junto à Doubleday, com seu editor, que por sinal se chamava, embora sem nenhuma relação de parentesco, Walter Bradbury, que o selo de classificação como “ficção científica” não mais aparecesse, nem na capa, nem em parte alguma da apresentação de seus livros.

Argumentava, de modo prático, para que o mesmo não ocorresse com O homem ilustrado (1951), seu livro seguinte, que as Crônicas marcianas teriam tido muito mais resenhas críticas e muito mais vendas não fosse o selo. Evocava ainda os casos de Aldous Huxley e George Orwell, que jamais eram referidos, segundo ele, como escritores de ficção científica.

Isso ele conseguirá não só com a eliminação do selo, mas sobretudo com o reconhecimento crescente, de crítica e de público, da qualidade literária de sua obra, também crescente, em um ritmo de produção constante, regular e disciplinado.

Tomando as Crônicas marcianas como referência, pode-se dizer que ali estão várias das características marcantes da obra de Ray Bradbury.

A primeira delas é que ele é um excelente contista, com algumas dificuldades para o romance, embora Fahrenheit 451 (1953) mereça estar situado entre as melhores obras do gênero que tratam do mundo sombrio da censura e do centralismo ideológico controlado e controlador. A alegoria do estado que queima o conhecimento através da ação pervertida e perversa do bombeiro que não apaga fogo, mas o ateia aos livros, para destruí-los, e, com eles, a memória, a história, a arte, a literatura, tem a motivação imediata dos anos duros das perseguições macarthistas nos Estados Unidos e o contraponto narrativo e poético do canto imortal da liberdade e do amor.

As Crônicas marcianas, por sugestão do editor, que queria publicar não um livro de contos, mas um romance, levaram os dois Bradbury a adotar um artifício engenhoso de composição que consistiu em criar capítulos-ponte entre os contos que integrariam o livro de modo a procurar dar-lhe organicidade e consistência de conjunto, apesar da autonomia das unidades narrativas de sua composição.

O resultado foi bem-sucedido do ponto de vista editorial, do ponto de vista comercial, do ponto de vista da aceitação crítica e popular, e inclusive do ponto de vista literário, já que o livro se tornou um clássico da literatura e inaugurou não apenas um truque de composição mas uma forma narrativa mista, a do conto-romance ou do romance-conto, a que ele voltaria com sucesso, como em O homem ilustrado, logo no ano seguinte, em 1951.

Mais uma vez, por sugestão de seu editor, ele busca construir pontes de ligação entre as pequenas ilhas narrativas que, se antes formavam um arquipélago de contos, agora se juntam em um continente andarilho e mutante cujo conteúdo se desenha nas tatuagens do corpo do ex-artista de curiosidades excêntricas de parques de diversão.

“O homem ilustrado” era já um conto, o mesmo que aparece aqui nesta coletânea e que, também por sugestão do editor, não aparecia no livro de 1951, do mesmo nome.

Para amarrar as ilhas, Bradbury imaginou, no prólogo, uma narrativa que emoldurasse os contos, e é nela que o jovem narrador, caminhando pelo Wisconsin, encontra outro estradeiro — o homem tatuado —, cujas ilustrações, no corpo, ganham vida à noite e formam quadros narrativos autônomos de antevisão de futuros sombrios. O último dos quadros a ganhar a vida, escrito no epílogo, mostra o homem ilustrado estrangulando o narrador.

O conto, este que aqui se oferece ao leitor, tem uma estrutura muito parecida com a da história-moldura do romance, com a diferença de que nele, agora, a vítima última do que as imagens prevêem é o próprio portador que em seu corpo carrega as previsões.

Manifesta-se, desse modo, uma outra característica do processo de criação e expressão literárias em Ray Bradbury.

Não só ele escreve muito, sistematicamente, como também reescreve tudo o que redige com a mesma e obstinada disciplina, reaproveitando, de modo sempre inventivo e inovador, textos, ideias, imagens, transformando contos em romances e novelas, novelas e contos em roteiros de filmes, em peças de teatro, de rádio e de televisão.

Do ponto de vista dos temas e do tratamento literário dados a eles, as Crônicas marcianas são também reveladoras de persistências na obra do autor.

Nesse sentido, vale anotar o que escreve Sam Weller a propósito de O homem ilustrado e da migração poética do futuro, da fantasia, do fantástico e do transcendente para a realidade social e política da América dos anos 1950 e vice-versa.

Tal como as Crônicas marcianas representavam um avanço considerável, estilística e tematicamente, em relação às histórias de Dark Carnival [seu primeiro livro, de 1947, sem tradução no Brasil], os contos selecionados para O homem ilustrado eram de primeira linha.

A linguagem era poética, as histórias, impregnadas de metáforas, os temas, transcendentes. Embora as histórias reunidas para esse novo livro fossem todas fantásticas — contos de fada de ficção científica que exibiam uma imaginação descolada e voando alto —, Ray estava novamente tratando de temas sociais e políticos com os quais já havia se envolvido profundamente em 1950: direitos civis, a ameaça da guerra atômica, o mau uso da tecnologia. Relevantes para 1950, a contínua relevância de O homem ilustrado, contudo, mostra que, tal como em Crônicas marcianas, Ray Bradbury mexia com lembranças importantes para os leitores; seus contos falavam para a experiência comum da cultura popular americana.

O filtro dessa identificação é poético e está armado sobre a nostalgia, a saudade que, como uma sanfona, comprime e empurra o som de lembranças, de expectativas, de esperanças, de abandonos, de solidões, de desertos, de cidades vazias, de países de infâncias para sempre perdidos.

Por mais estranho que pareça — e de fato é muito estranho —, toda vez que leio a perambulação dos personagens de Bradbury, seja ela galáctica, ou no jardim da casa de uma cidadezinha americana do Meio-Oeste, interplanetária ou regionalíssima, o som desse filtro tem um pouco da fúria estática de Faulkner e a tristeza alongada e penetrante da broca do bandoneon de Piazzola.

A melancolia é, assim, uma outra característica constante da literatura de Ray Bradbury, o que dá um amarrio bem trançado com o processo de sua identificação com a cultura popular americana, considerando as grandes experiências sociais, políticas e econômicas vivenciadas pelo autor e seu público leitor e reproduzidas metaforicamente nas fantasias de sua rica imaginação criativa.

A invasão de Marte é, desse modo, a metáfora da conquista do Oeste e a saga de sua conquista, o eco solitário de uma aventura perdida, a não ser pela memória dos pais e dos avós do autor de quem ele ouviu narrativas, na infância, que o embalaram para a admiração que na juventude ele teria, fascinado, pelo As vinhas da ira, de John Steinbeck:

Decidi, antes de tudo, que haveria certos elementos de similaridade entre a invasão de Marte e a invasão do Velho Oeste. [...] Eu havia ouvido de meus pais e de meus avós histórias de diversas aventuras no Oeste, mesmo tardiamente no ano de 1908, quando tudo já estava vazio, parado, em solidão. Aí me dei conta de que Marte, na realidade, poderia ser esse novo horizonte que o Billy Buck de Steinbeck contemplava das praias do Pacífico quando a “Marcha para o Oeste” já terminara e com as aventuras não havia nada o que fazer senão resignar-se com o seu fim.

Ray Bradbury nasceu, como se sabe, em 1920, tendo também vivenciado, na infância, o drama da Grande Depressão que abalou a sociedade americana por muitos anos desde 1929, ano de sua ocorrência. De família pobre, o jovem Ray levou consigo as consequências do acentuado empobrecimento do país e lutou bravamente para realizar o seu sonho obsessivo de tornar-se um grande nome da literatura e do espetáculo, em sua terra e em todo o mundo. Aventurou-se, escreveu e reescreveu desde cedo, vendeu jornais, frequentou o lado de fora das salas do sucesso em Hollywood e, aos poucos, foi entrando, depois convidado a entrar, a permanecer. Não saiu mais.

A experiência vivida pelos Estados Unidos com a Depressão e tê-la, ele próprio, vivenciado na juventude é também um elemento fundamental para a compreensão da obra de Bradbury, como o é também a sua experiência com a censura macarthista nos anos 1950, contra a qual foi um militante aguerrido e a qual lhe deu a motivação definitiva para a composição de Fahrenheit 451.

Além dos temas gerados pela realidade social que a pobreza espalhava sobre o orgulho nacional, para não dizer sobre a arrogância das classes dirigentes — Fitzgerald Scott, em seus romances e contos, capta como ninguém as luzes esmaecidas dessa hora cambiante da grande nação —, penso que no caso da depressão econômica é preciso ali ir buscar, mais do que as histórias, o filtro de subjetividade que a sua experiência instalou nos olhos, na alma e no coração do autor, para constituir-se, enfim, em um elemento-chave da estrutura narrativa de suas composições: a melancolia.

Moacyr Scliar, em um livro que traz um ensaio admirável sobre o tema, fala da melancolia como doença e como experiência existencial, isto é, como componente cultural da visão e da interpretação do mundo.

Nesse sentido, a melancolia é uma forma de ser, uma maneira de ser visto, um método de comportamento e um comportamento metódico, uma atitude estética e uma função social, um estado de espírito e um espírito em estado de contemplação, uma sensibilidade e uma idéia, um conceito e uma metáfora. É uma epidemia cultural no renascimento, transforma-se em doença, logo caracterizada com mais precisão em outras nomenclaturas cientificamente mais apropriadas aos estados de morbidez psíquica: depressão, desordem bipolar, psicose maníaco-depressiva.

Mas permanece como metáfora, como postura de existência, como condição de humanidade e, nesse caso, por analogia, pode-se dizer que depressão e melancolia, de certa forma, se equivalem.

No sentido que lhe dava Robert Burton (1577-1640) em seu famoso livro The anatomy of melancoly, e segundo a observação de Moacyr Scliar sobre o autor inglês, “a melancolia era, como a depressão, uma doença, mas não só uma doença, era uma experiência existencial. Tristeza, sim, e tristeza duradoura, e talvez até tédio, mas uma condição existencial envolta em aura filosófica, o que lhe dava dignidade e distinção”.

É dessa melancolia que se trata e que consegue alinhar uma estirpe de grandes artistas através dos tempos, enfurnando alguns famosos entre livros, em bibliotecas, como um refrão de comportamento entre misantropo e solitário, entre solitário e reflexivo, entre reflexivo e crítico, entre crítico e solidário com o homem e a fragilidade de sua condição humana.

Nessas bibliotecas em que se enfiaram gênios como Montaigne e Borges, procurou abrigar-se também Ray Bradbury, lendo e escrevendo, escrevendo e lendo, em um ritmo bipolar de recolhimento e depressão e de mania compulsiva para a produtividade, o excesso, a aventura, o fora-de-lugar, o fora-do-tempo, o futuro. E se Burton escreveu sua anatomia, Bradbury nos legou A medicine for melancoly (1959), trazendo 22 contos, entre os quais “O dragão”, que consta também da presente coletânea.

É como se no mesmo indivíduo se juntassem, e em harmonia convivessem, uma ética do trabalho e uma ética da aventura, sem conflitos, cumprindo com os deveres e, ao mesmo tempo, transgredindo as próprias regras de constituição dessas obrigações.

A depressão entra, desse modo, por um duplo caminho na obra de Ray Bradbury: é tema e evocação de um estado de coisas gerado por uma situação específica da economia americana, afetando também outros países; é um estado de espírito, uma disposição de atitude nascida, ela própria, das condições gerais em que se deu a depressão econômica, mas também, ao contrário, princípio ativo de reflexão crítica sobre essas mesmas condições em que nascem e que, agora, filtradas pela melancolia, devem reaparecer compreensíveis e tocantes de poesia e entendimento para o autor e para os leitores, personagens juntos do episódio histórico e psicológico transfigurado em literatura.

A melancolia acentua o tom lírico das narrativas de Bradbury, acentuado ainda mais pela busca persistente de títulos extraídos de grandes autores poetas, como é o caso de Shakespeare, em que foi buscar o título de Something wicked this way comics (1962), Yeats, The golden apples of the sun (1953), e Walt Whitman, I sing the body electric (1969).

Os contos que você vai ler nesta coletânea vão, sem dúvida, ajudá-lo a navegar pela fantasia cosmológica de Ray Bradbury, em uma viagem fantástica, parecida com a que os passageiros do navio Claude-Bernard empreendem em Os prêmios, de Julio Cortázar. Quanto mais avançam, menos saem do lugar; quanto mais nele ficam, mais avançam para a descoberta do mistério dos mistérios que se guarda na proa. A revelação do que ali se esconde é vazia de substância, é a forma do conteúdo de uma resposta para a qual não se encontrou a forma da pergunta adequada. É nada. É nada que não esteja na forma da vivência das experiências de vida compartilhadas. É memória de si mesma, como o futuro não pode ser outra coisa senão o que carrega do passado e do presente como potencial de novas realidades.

Por isso, a imaginação, o sonho, a fantasia apontam sempre, de um lado, para os mundos possíveis que a ficção científica quer descortinar; de outro, aprumam o foguete para a impossibilidade de mundos que não são, não foram, jamais serão. Mas poderiam ter sido e, desse modo, ainda que intangível, são para sempre, na forma em que a aventura literária oferece para a eternização de sua provisoriedade e das circunstâncias de sua ocorrência.

A melancolia é uma dessas formas. Ela desenha o trajeto da viagem que você vai fazer ao embarcar na leitura dos contos de Bradbury. É possível que você não saia do lugar, mas o ache estranho ao desembarcar dessa nave de prosas e histórias movida a poesia em combustão.

Boa viagem!


Carlos Vogt
Prefácio extraído de: A cidade inteira dorme e outros contos breves
Ray Bradbury
Editora: Globo Livros, selo Biblioteca Azul

Ano de publicação no Brasil: 2008

Páginas: 194

ISBN: 9788525043771

O Canon dos Prefácios em Ficção científica - Fahrenheit 451




Prefácio para Fahrenheit 451 de Ray Bradbury

Em 1933, quando os nazistas queimaram em praça pública livros de escritores e intelectuais como Marx, Kafka, Thomas Mann, Albert Einstein e Freud, o criador da psicanálise fez o seguinte comentário a seu amigo Ernest Jones: “Que progressos estamos fazendo. Na Idade Média, teriam queimado a mim; hoje em dia, eles se contentam em queimar meus livros”.

 

Deixando de lado o fato de que a ironia de Freud logo se tornaria ingênua diante dos fornos crematórios de Auschwitz e Dachau, podemos nos perguntar: o que aconteceria se os livros fossem incinerados, varridos da face da Terra até o ponto em que o único vestígio de milênios de tradição humanista estivesse alojada na memória de alguns poucos sobreviventes? Qual seria o próximo passo da barbárie? Queimar os próprios homens, para apagar de vez a memória dos livros?

 

É essa a pergunta que reverbera na mente no leitor após a leitura de Fahrenheit 451, de Ray Bradbury. Pois esse romance visionário — cuja justa celebridade foi amplificada pela repercussão do filme homônimo de François Truffaut (com Oskar Werner e Julie Christie nos papéis principais) — trata justamente de uma sociedade em que os livros foram proscritos, em que o simples fato de manter obras literárias ou filosóficas em casa constitui-se num crime.

 

Fahrenheit 451 foi publicado em 1953, mas sua ação se passa num futuro não muito distante dessa época. Em uma passagem do livro, aliás, uma personagem comenta: “Desde 1990, já fizemos e vencemos duas guerras atômicas!” — o que leva o leitor a deduzir que o futuro de Bradbury corresponde mais ou menos ao nosso presente.

 

O enredo é ambientado numa cidade dos eua, mas não há nada de futurista em sua paisagem; não há grandes aparatos tecnológicos ou aquela assepsia que costuma cercar as narrativas localizadas num porvir em que a ciência transformou o habitat humano num grande laboratório. A cidade de Fahrenheit 451, em resumo, é apenas um pouco mais sombria e opressiva do que a maioria das metrópoles contemporâneas, com seu misto de progresso industrial e deterioração do tecido urbano, onde moderníssimos meios de transporte atravessam bairros decadentes.

 

Há, porém, uma grande diferença em relação às nossas cidades: as casas de Fahrenheit 451 são à prova de combustão. Por isso, os bombeiros desempenham agora uma nova função: em lugar de apagar incêndios, sua tarefa é atear fogo. Os bombeiros de Bradbury são agentes da higiene pública que queimam livros para evitar que suas quimeras perturbem o sono dos cidadãos honestos, cujas inquietações são cotidianamente sufocadas por doses maciças de comprimidos narcotizantes e pela onipresença da televisão.

 

Esse dado inverossímil, que imanta a sociedade fictícia de Fahrenheit 451, faz com que o relato de Bradbury seja incluído na categoria das “distopias”. Em geral associadas à “ficção científica”, as distopias são “a descrição de um lugar fora da história, em que tensões sociais e de classe estão aplacadas por meio da violência ou do controle social” — segundo as palavras de Roberto de Sousa Causo (um importante estudioso do assunto e escritor de ficção científica). Como o próprio nome diz, a distopia é o contrário da utopia, ou uma “utopia negativa” — e vale a pena refletir um pouco sobre esse gênero, tão peculiar ao nosso tempo, antes de avaliar a importância de Fahrenheit 451.

 

As utopias surgiram como uma imagem invertida do real, como uma espécie de contrapartida positiva da razão crítica: se uma das atitudes filosóficas mais persistentes ao longo do tempo é o antidogmatismo e a denúncia de uma sociedade construída sobre um sistema de mistificações (o mito, a religião, a ideologia), a utopia seria o mundo possível a partir do momento em que todas essas crenças tivessem sido superadas.

 

Ressalta daí uma das características das utopias: elas parecem irreais porque são racionais em excesso, porque contrastam com a irracionalidade reinante nas relações sociais. A cidade do sol de Campanella, o Eldorado de Thomas More (autor de Utopia ou sobre o ótimo estado da república e sobre a nova Ilha Utopia) e o “falanstério” de Fourier criam em termos meramente hipotéticos uma idade de ouro do racionalismo. As utopias são constituídas por nações idílicas, em que homens solidários e justos mantêm relações de cordialidade em meio a uma natureza dadivosa e domesticada, que serve de celeiro e jardim da humanidade. As utopias são, por assim dizer, o sonho da razão, além de uma vulgarização do humanismo — e por isso as grandes utopias ocidentais estão compreendidas entre o renascimento e o fim do século XIX.

 

Num século anti-humanista como o que acabamos de atravessar, porém, a razão deixou de ser o antípoda da desrazão, da mitologia e da religião, para se tornar, ela mesma, um desdobramento dessa fúria dominadora. “O esclarecimento, ou seja, a razão instrumental, é a radicalização da angústia mítica”, escreveram Adorno e Horkheimer — e a imaginação literária do século XX foi pródiga em criar sociedades fictícias em que a racionalidade se transforma num fim em si mesma: abstrata, mecanicista, reduzindo o existente a um utensílio, alienando a consciência na linha de montagem e produzindo massacres com planejamento industrial. No século XX, como na famosa gravura de Goya, o sonho da razão produz monstros. Ou, em outras palavras, distopias.

 

Os universos opressivos descritos em romances distópicos como Nós, de Ievguêni Zamiátin (também publicado no Brasil sob o título A muralha verde), Admirável mundo novo, de Aldous Huxley, ou A revolução dos bichos e 1984, de George Orwell, seriam assim os antecedentes imediatos de Fahrenheit 451. A exemplo desses livros, encontramos em Bradbury uma sociedade policialesca, com propensões totalitárias, em que a individualidade é sacrificada a razões de Estado. Em certo sentido, porém, Fahrenheit 451 é bem mais realista — e isso não apenas no sentido da representação naturalista (o livro é muito menos rico em invenções de um mundo alternativo do que seus precursores), mas na estranha verossimilhança que esse livro adquiriu cinquenta anos após sua publicação.

 

A trama de Fahrenheit 451 é bastante simples e apresenta vários pontos de contato com as obras de Huxley e Orwell. O romance conta a história de Guy Montag, um bombeiro que, após várias incinerações de livros, começa a se perguntar sobre o fascínio que essas páginas impressas exercem sobre algumas pessoas obstinadas, que desafiam a ordem estabelecida pelo simples prazer de ler. Dois fatos são decisivos na urdidura do romance. Numa ação dos bombeiros, ele testemunha a autoimolação de uma senhora (cujo sugestivo nome de família é Blake) que se recusa a abandonar sua casa, preferindo morrer no incêndio de sua biblioteca pessoal. Paralelamente, Montag conhece Clarisse McClellan, uma jovem adolescente que instila nele o prazer de coisas simples e espontâneas – como a conversa entre amigos (coibida numa sociedade que administra o ócio por meio de atividades programadas) e a indagação sobre “o porquê” das coisas (uma excrescência no mundo utilitário de Fahrenheit 451, onde só importa “o como” de vivências protocolares).

 

Esses dois acontecimentos têm como pano de fundo o cotidiano asfixiante das demais personagens. Assim como em Admirável mundo novo (em que existe um narcótico, o soma, que provoca um bem-estar politicamente anestesiante), em Fahrenheit 451 a mulher de Montag, Mildred, vive à base de pílulas que embalam sua irrealidade cotidiana. E, como em 1984 (no qual a privacidade era devassada pela onipresença do Grande Irmão), as casas têm murais televisivos que transmitem ininterruptamente “novelas” com as quais os moradores podem interagir. A partir daí, toda a ação de Fahrenheit 451 vai se desenrolar no desafio de Montag às proibições vigentes e na sua tentativa de fuga da cidade, proporcionada pela amizade com Faber — um professor que ele outrora investigara e que agora se torna seu cúmplice.

 

O que interessa aqui, porém, é frisar a singularidade da distopia de Bradbury. Pois enquanto Huxley e Orwell escreveram seus livros sob o impacto dos regimes totalitários (nazismo e stalinismo), Bradbury percebe o nascimento de uma forma mais sutil de totalitarismo: a indústria cultural, a sociedade de consumo e seu corolário ético — a moral do senso comum.

 

A ideia de que existe uma ditadura da maioria, que pune o diverso, aparece em vários momentos do romance, quase sempre personificado em Beatty, o chefe dos bombeiros. No momento em que está prestes a incendiar os livros da senhora Blake, por exemplo, ele diz: “Não há o menor acordo entre esses livros. Você ficou trancada aqui durante anos com essa malfadada Torre de Babel. Saia dessa situação! As pessoas nesses livros nunca existiram”. Essa intolerância diante do que é complexo, do que é desviante, do que é problemático ou contraditório perpassa a narrativa de Bradbury e corresponde a uma antiga desconfiança em relação ao ficcional, ao poder desestabilizador da literatura e do imaginário. (Diga-se, entre parênteses, que Fahrenheit 451 poderia ilustrar perfeitamente a ideia do ‘’controle do imaginário’’ desenvolvida por um ensaísta como Luiz Costa Lima, que em diversas obras — Vida e mímesis, Limites da voz e Mímesis: desafio ao pensamento — descreve o processo pelo qual a literatura foi constituída, enquanto discurso autônomo, como um espaço circunscrito e limitado do imaginário social e individual, de modo a subordinar o ficcional — e sua criticidade implícita – aos discursos dominantes da religião, da filosofia ou da ciência.)

 

Beatty é a personagem mais fascinante de Fahrenheit 451. Como chefe dos bombeiros, ele desempenha o papel de inquisidor-mor; ao mesmo tempo, conhece profundamente aquilo que quer esmagar, sendo capaz de citar Shakespeare de cabeça. Não seria exagerado fazer um paralelo entre essa figura contraditória e o Grande Inquisidor de Os irmãos Karamazov. No romance de Dostoiévski, Cristo retorna à Terra e é preso pela igreja católica espanhola porque, segundo o Grande Inquisidor, sua mensagem de liberdade seria insuportável para o homem. Da mesma maneira, o chefe dos bombeiros procura mostrar ao hesitante Montag que os livros são “o caminho da melancolia”, da incerteza. Os livros, enfim, são um convite à transcendência, ao desvario, à errância, ao desvio em relação ao destino bovino da humanidade conformada. “Sempre se teme o que não é familiar”, diz Beatty — e conclui: “Um livro é uma arma carregada na casa vizinha”.

 

E é justamente aí que surge o aspecto mais inquietante de Fahrenheit 451. Bradbury não imaginou um país de analfabetos, mas diagnosticou um mundo em que a escrita foi reduzida a um papel meramente instrumental e no qual a literatura e a arte têm função “culinária” (segundo a expressão de Adorno). As personagens sabem ler, mas só querem ler a programação de suas televisões ou o manual técnico que lhes permitirá ter acesso a um entretenimento que preenche seu vazio — como está magistralmente sintetizado por essa fala de Beatty:

 

“Todo homem capaz de desmontar um telão de tevê e montá-lo novamente, e a maioria consegue, hoje em dia está mais feliz do que qualquer homem que tenta usar a régua de cálculo, medir e comparar o universo, que simplesmente não será medido ou comparado sem que o homem se sinta bestial e solitário. Eu sei porque já tentei. Para o inferno com isso! Portanto, que venham seus clubes e festas, seus acrobatas e mágicos, seus heróis, carros a jato, motogiroplanos, seu sexo e heroína, tudo o que tenha a ver com reflexo condicionado. Se a peça for ruim, se o filme não disser nada, estimulem-me com o teremim, com muito barulho. Pensarei que estou reagindo à peça, quando se trata apenas de uma reação tátil à vibração. Mas não me importo. Tudo o que peço é um passatempo sólido”.

 

É difícil avaliar o quanto essa descrição de um mundo assolado pela indústria do entretenimento soava caricatural quando Bradbury publicou Fahrenheit 451. Atualmente, porém, nenhum leitor do romance terá dificuldade em ver nesse quadro desolador um instantâneo de nossa realidade mais cotidiana. Os monitores de televisão, onipresentes nesse livro, podem ter sido inspirados no Grande Irmão de Orwell; hoje, ironicamente, se parecem mais com os reality shows. Em Fahrenheit 451, não há um poder central que tudo vigia (como acontecia em 1984), mas um ressentimento geral que produz “bombeiros” — essa corporação de censores com mandato popular para representar “o rebanho impassível da maioria”.

 

Sob certo aspecto, portanto, Fahrenheit 451 não é uma distopia, mas um romance realista, que flagra a dialética demoníaca da sociedade de massas, em que as massas parecem ser títeres das elites, mas na qual as elites só existem em função das massas. Como lembra Faber, em um diálogo com Montag, a sociedade do espetáculo é uma espécie de servidão voluntária:

 

“Os bombeiros raramente são necessários. O próprio público deixou de ler por decisão própria. Vocês, bombeiros, de vez em quando garantem um circo no qual multidões se juntam para ver a bela chama de prédios incendiados, mas, na verdade, é um espetáculo secundário, e dificilmente necessário para manter a ordem. São muito poucos os que ainda querem ser rebeldes”.

 

Ao final do romance, Montag se refugia em uma comunidade de homens que vivem à margem da sociedade e que, para escapar à ameaça dos juízes e dos censores, decoram livros. Eles podem, assim, apagar os perigosos vestígios materiais de sua devoção, ao mesmo tempo que preservam a memória da escrita. Entretanto, esse pequeno gesto de rebeldia estará sempre ameaçado pelo veredicto de Heine: “Onde se lançam livros às chamas, acaba-se por queimar também os homens”.

 

Manuel da Costa Pinto


***

Prefácio para Fahrenheit 451 de Ray Bradbury, publicado na edição da Editora Globo, 1981.

O Homem Ilustrado — Ray Bradbury – Prólogos imortais da Ficção Científica

O Homem Ilustrado

Ray Bradbury


PRÓLOGO

Foi por uma tarde quente de princípios de Setembro que encontrei, pela primeira vez, o Homem Ilustrado. Percorria a última etapa de uma viagem a pé, de quinze dias, pelo Wisconsin. Ao cair da noite parei para comer alguma carne de porco com feijões e um biscoito. Preparava-me para me estender a ler quando o Homem Ilustrado surgiu no alto da colina e ficou um momento imóvel, a silhueta recortada contra o céu.

Ignorava, nesse momento, que ele estava Ilustrado. Reparei, unicamente, que era alto, que outrora fora bem musculado mas, agora, por qualquer razão, tinha tendência para engordar. Lembro-me que possuía uns braços longos e umas mãos grossas, mas o rosto, no alto do corpo maciço, era como o de uma criança.

Pareceu pressentir a minha presença, pois não me olhou quando pronunciou as primeiras palavras: — Sabe onde poderei encontrar trabalho?

— Lamento, mas não sei — respondi.

— Ainda não consegui um emprego durável nestes últimos quarenta anos.

Fazia calor. No entanto, o colarinho da sua camisa de lã estava abotoado e as mangas fechadas em redor dos grossos punhos. O suor corria-lhe pelo rosto, mas não abria a camisa.

— Bem — disse ele, finalmente —, este sítio é tão bom como qualquer outro para passar a noite. Importa-se que lhe faça companhia?

— Tenho ainda alguma comida que gostaria de repartir consigo — ofereci eu.

Sentou-se pesadamente, resmungando.

— Vai arrepender-se de me pedir para ficar. Toda a gente se arrepende. É por causa disso que não paro. Estamos em princípios de Setembro, a melhor época para divertimentos. Ganharia montões de ouro numa feira de qualquer pequena cidade. Mas estou aqui, sem qualquer contrato.

Descalçou um enorme sapato e examinou-o de perto.

— Geralmente, aguento-me num emprego dez dias. Depois, acontece sempre a mesma coisa e despedem-me. Nesta altura, em nenhuma feira da América me quereriam tocar, nem sequer com a ponta de uma vara.

— Mas o que é que se passa consigo?

Como resposta, desabotoou lentamente o apertado colarinho. Com os olhos fechados, abriu a camisa e, com a ponta dos dedos, tateou o peito.

— É curioso — observou ele —. Não se podem sentir, mas a verdade é que estão cá. Tenho sempre a esperança de que um dia desaparecerão. Durante horas seguidas caminho ao Sol, sob o mais escaldante calor, queimo-me, na esperança que o suor as faça desaparecer, que o Sol as derreta; mas a noite ainda cá estão.

Voltando ligeiramente a cabeça na minha direção, mostrou-me o peito.

— Ainda estão aqui. As Ilustrações.

— Uma outra razão por que conservo o colarinho abotoado são as crianças — disse ele, abrindo os olhos —. Perseguem-me pelos caminhos, pelos campos. Querem ver as imagens e, todavia, ninguém, a não ser elas, tem curiosidade nisso.

Despiu a camisa e torceu-a. Estava coberto de imagens, desde o anel tatuado, à volta do pescoço, até a cintura.

— E isto continua — prosseguiu ele, adivinhando o meu pensamento. — Sou inteiramente ilustrado. Veja!

Abriu a mão. Na palma havia uma rosa — tinha acabado de ser colhida e nas delicadas pétalas via-se ainda orvalho cristalino. Estendi o dedo para tocá-la, mas era uma imagem!

Quanto ao resto de seu corpo... Não poderei explicar como fiquei ali com os olhos esgazeados. Era um turbilhão de astronaves, fontes e gentes, com tão entrelaçados pormenores e cores que se podiam ouvir os murmúrios e as vozes abafadas das multidões que habitavam aquele corpo. Quando estremecia, as pequenas bocas animavam-se, os minúsculos olhos verdes ou dourados moviam-se, as pequenas e rosadas mãos agitavam-se. Havia prados amarelos, rios azuis, montanhas, estrelas, sóis e planetas, dispersos numa Via-Láctea que lhe descia pelo peito. As figuras estavam dispersas, em grupos de vinte ou trinta, nos braços, nas espáduas, no dorso, nos flancos, nos punhos, no plexo solar. Havia-as, também, numa floresta de pêlos, escondidas entre uma constelação de sardas, espiando do fundo das cavernosas axilas, os olhos faiscando como diamantes. Cada grupo parecia ter uma atividade própria; cada um era constituído por uma galeria diferente de figuras.

— São belas! — exclamei.

Como descrevê-las? Se Greco, no auge do talento, tivesse pintado miniaturas não maiores que a mão, com as suas cores sulfurosas, com a sua morfologia especial, a anatomia alongada, talvez tivesse aproveitado o corpo deste homem para a sua obra. As cores brilhavam em três dimensões. Pareciam janelas abertas sobre uma realidade exuberante. Aí, reunidas como numa parede, recortavam-se as cenas mais extraordinárias do Universo. Este homem era um museu ambulante. Não era o trabalho tricromado de um tatuador de feira, de hálito avinhado; era a obra-prima inspirada, vibrante, límpida e bela de um gênio.

— Oh, sim! — disse o Homem Ilustrado. — Sou tão orgulhoso das minhas ilustrações que até gostaria de lhes lançar fogo. Já tentei o esmeril, o ácido, a navalha...

O Sol escondia-se. A Lua, a Oriente, estava já alta.

— Porque, veja — continuou o Homem Ilustrado —, estas ilustrações predizem o futuro.

Olhei-o em silêncio.

— Durante o dia, ainda vá — prosseguiu ele —, posso arranjar trabalho por umas horas. Mas à noite, elas movem-se. As imagens ganham vida própria.

Creio que sorri.

— Desde quando está ilustrado?

— Em 1900, tinha eu vinte anos, trabalhava numa feira e parti uma perna.

O acidente imobilizou-me. Tinha de arranjar trabalho para me manter. Então decidi fazer-me tatuar.

— Mas quem o tatuou? O que aconteceu ao artista?

— Ela voltou para o futuro... É exatamente isso que quero dizer. Uma velha mulher, numa casinha algures no Wisconsin, em algum sítio não longe daqui. Uma velha e pequena feiticeira que tinha o ar de ter mil anos em certos momentos e vinte no instante imediato. Mas afirmou-me que se podia deslocar no tempo. Ri-me. Mas já não o faço agora!

— Como a encontrou?

Relatou-me, então, a história. Tinha visto na berma de uma estrada uma tabuleta pintada: “Ilustrações sobre a pele!” Ilustrações e não tatuagens! Foi no decorrer de uma noite que as agulhas mágicas da mulher o morderam como vespas, o picaram como abelhas, o sugaram como sanguessugas. Chegada a manhã, tinha o aspecto de um homem que tivesse passado sob uma prensa polícroma, muito liso, multicolor, cintilante.

— Procurei-a todos os Verões, durante cinquenta anos — terminou ele, estendendo os braços. — Quando encontrar a feiticeira, matá-la-ei!

O Sol desaparecera. As primeiras estrelas brilhavam no firmamento e a Lua iluminava os campos de trigo e os prados. As imagens do Homem Ilustrado brilhavam como carvões, na penumbra, como rubis e esmeraldas, com as cores das telas de Van Gogh, de Klee e os corpos alongados de Greco.

— Quando as imagens se movem, as pessoas mandam-me embora.

Ninguém gosta de as ver, tanto mais que nas minhas ilustrações se passam coisas espantosas. Cada uma delas é uma historinha. Se as observar, elas contarão, em poucos minutos, uma história. Em três horas verá desenrolar-se uma vintena de histórias sobre o meu corpo. Poderá ouvir vozes, perceber pensamentos. Tudo está aí, basta que olhe. Mas há, sobretudo, um certo local...

Mostrou-me o dorso.

— Está a ver? Não há um único desenho regular na espádua direita. Está tudo misturado. — Realmente, assim é!...

— Sempre que estou muito tempo com alguém, esta zona cobre-se de sombras, depois aparece isso. Se estou com uma mulher, a sua imagem surge ao fim de uma hora no meu dorso, e ela vê aí retratada toda a sua vida: como vai viver, como morrerá, como terá o rosto aos sessenta anos. E se é um homem, a imagem surge no meu dorso ao fim do mesmo tempo. Pode ver-se caído de uma falésia ou esmagado por um comboio. Então, mandam-me de novo embora.

Enquanto falava percorria as mãos pelas ilustrações, como para ajeitar as molduras, limpar-lhes o pó, num gesto de conhecedor, de amador de arte. Estava agora estendido ao comprido, sob o luar. A noite estava quente, sufocante até, sem uma aragem. Tínhamos despido a camisa.

— E nunca mais encontrou essa mulher?

— Nunca mais!

— Acredita que ela veio do futuro?

— Se assim não fosse, como poderia conhecer as histórias que pintou no meu corpo?

Cerrou os olhos, fatigado. A sua voz tornou-se menos distinta.

— Por vezes, durante a noite, sinto-as moverem-se como formigas sobre o corpo. Sei, então, que fazem o que têm a fazer. Nunca as olho. Tento, somente, ter algum repouso, porque durmo pouco. Não as olhe também, previno-o. Volte-se para o outro lado para dormir.

Deitei-me a alguma distância. O homem não me parecia capaz de violência e as imagens eram muito belas. Se não fosse isso ter-me-ia retirado, acabando com a conversa. Mas as ilustrações...

Deixei os olhos percorrê-las. Quem quer que fosse ficaria meio doido se tivesse isto sobre o corpo.

A noite estava serena. Podia ouvir o Homem Ilustrado respirar, banhado pelo luar. Ao longe, os grilos trilavam suavemente nas ravinas. Deitei-me de lado para observar as imagens. Decorreu talvez uma meia hora. Não poderia dizer se o Homem Ilustrado dormia, mas, de repente, ouvi-o dizer num murmúrio: — Estão a mover-se, não é verdade?

Esperei um momento. Depois respondi: — Sim, agitam-se.

As imagens animavam-se, cada uma por sua vez, durante um ou dois minutos. Ali, sob a Lua, com breves pensamentos, que vibravam, e vozes distantes como as do mar, vi desenrolar-se cada um daqueles pequenos dramas. Uma hora, duas horas, até quando? Será difícil dizê-lo. Sei somente que fiquei ali, fascinado, sem me mexer, sob as estrelas que brilhavam no Céu.

Dezoito ilustrações. Dezoito histórias. Contei-as uma a uma.

Fixei os olhos numa cena: uma grande casa com duas figuras no interior.

Vi o voo de abutres num céu tórrido e leões. E ouvi vozes.

A primeira imagem estremeceu e animou-se. 

O que é um prólogo? O prólogo é uma introdução presente em algumas obras literárias, frequentemente escrita pelo autor ou por uma terceira pessoa, que oferece ao leitor uma contextualização antes do início da narrativa principal. Ele pode esclarecer elementos importantes, como informações de fundo sobre os personagens, o cenário, ou a trama, preparando o leitor para a história que está por vir. Além disso, o prólogo pode explorar temas ou questões que serão centrais ao longo do livro, criando uma ponte entre o leitor e o universo ficcional da obra.

Ray Bradbury — Cover Art

Ray Bradbury  - The Illustrated Man
Ray Bradbury - Chroniques Martiennes (Enki Bilal)
Ray Bradbury - Fahrenheit 451

Ray Bradbury - The Veldt
Ray Bradbury - O Abismo de Chicago

O Pedestre — Conto de Ray Bradbury

O Pedestre
Ray Bradbury


Penetrar naquela quietude que era a cidade às oito horas de uma nebulosa noite de novembro, pousar os pés naquela sólida calçada de concreto, pisar nas fendas de mato, e andar, de mãos nos bolsos, pelos silêncios, era o que o Sr. Leonard Mead mais gostava de fazer. Ficaria numa esquina de um cruzamento, olhando as calçadas enluaradas nas quatro direções, decidindo por onde ir, mas realmente, não faria diferença; estava sozinho, neste mundo de 2053, ou, como se estivesse só, e com uma decisão final tomada, um caminho escolhido, sairia andando, soltando rastros de ar congelado à sua frente, como a fumaça de um cigarro.

Às vezes, andava durante horas, milhas, e voltava para casa só à meia-noite. E, no caminho, via casas, grandes e pequenas, com suas janelas escuras, e não era diferente de caminhar por um cemitério onde só o mais fraco luzir de um vagalume como que tremeluzia por detrás das janelas. Súbitos espectros acinzentados pareciam manifestar-se sobre as paredes das salas, onde uma cortina ainda estava aberta para a noite, ou cicios e murmúrios onde uma janela num edifício-tumba ainda estava aberta.

O Sr. Leonard Mead parava, inclinava a cabeça, ouvia, olhava, e continuava a marcha, pés sem fazer ruído na calçada irregular. Há muito, prudentemente, passara a usar sapatos de tênis para passear à noite, porque os cães, em alguns quarteirões, seguiriam sua caminhada com seus latidos, se usasse calçado com sola de couro, e luzes poderiam acender-se, e rostos aparecer, e toda uma rua sobressaltar-se com a passagem de um vulto solitário; ele mesmo, no começo de uma noite de novembro.

Nesta noite, em particular, começou sua jornada para o oeste rumo ao mar, invisível. Havia um bom frio cristalino, no ar; cortava o nariz e fazia os pulmões arderem por dentro, como uma árvore de Natal; podia-se sentir as luzes acendendo e apagando, os ramos cheios de uma neve invisível. Escutava seu calçado macio empurrar delicadamente as folhas de outono, satisfeito, e assobiava frio e baixinho, entredentes, ocasionalmente arrancando uma folha, de passagem, examinando o desenho esqueletal, às poucas lâmpadas, enquanto ia adiante, cheirando seu odor enferrujado.

— Ó de casa — ele murmurava para cada casa, por todo lado, enquanto passava. — O que está passando hoje no Canal 4; Canal 7; Canal 9? Por onde estão correndo os "cowboys", e onde está a Cavalaria dos Estados Unidos, para sair daquela colina, e salvar a situação?

A rua estava silente, longa, vazia, apenas com a sua sombra movendo-se, como a sombra de um falcão, em meio a um campo. Fechou os olhos, e ficou bem quieto, congelado, e podia imaginar-se no meio de uma planície, um deserto Americano, sem ventos, inverno, sem casa nenhuma num raio de mil milhas, e só leitos de rios, as ruas, para companhia.

— E agora, o que temos? — perguntou para as casas, olhando para seu relógio de pulso. — Oito e meia? Hora de uma dúzia de assassinatos diversos? Uma charada? Um musical? Um comediante levando um tombo?

Aquilo foi um ruído de dentro de uma casa à luz da lua? Hesitou, mas continuou, quando nada mais se notou. Tropeçou numa irregularidade maior da calçada. O cimento estava desaparecento, sob as flores e o mato. Em dez anos de caminhada, noite e dia, por milhares de milhas, nunca encontrara outra pessoa andando, nunca, nem uma só vez.

Chegou a um trevo, deserto, onde duas estradas principais cruzavam a cidade. Durante o dia, era uma trovejante corrente de carros, os postos de gasolina abertos, um grande farfalhar de insetos, e um incessante mudar de posição, enquanto os carros-escaravelho, uma névoa de incenso saindo de seus escapamentos, deslizavam para casa, nas mais diversas direções. Mas agora, estas estradas, eram como rios temporários no verão, só pedra, leito, e luar.

Virou por uma rua secundária, fazendo a volta para casa. Estava a um quarteirão de seu destino, quando aquele carro solitário virou uma esquina, repentinamente, e acendeu um forte cone de luz branca sobre ele. Ficou em transe, não muito diferente de uma mariposa, atordoada pela iluminação, e então, atraído para ela.

Uma voz metálica dirigiu-se a ele:

— Fique parado. Fique onde está! Não se mova!

Ele parou.

— Erga as mãos!

— Mas... — ele falou.

— Mãos para cima! Ou atiramos!

A polícia, claro, mais que coisa rara, incrível; numa cidade de três milhões, restava só um carro de polícia, não era isso? Já havia um ano, desde 2052, o ano das eleições, que a força policial havia sido cortada de três para um carro. O crime estava desaparecendo; não havia necessidade de polícia, exceto este carro solitário vagando e vagando pelas ruas desertas.

— Seu nome? — disse o carro, num chiado metálico. Ele não podia ver os guardas lá dentro, por causa da luz muito forte em seus olhos.

— Leonard Mead — respondeu.

— Mais alto!

— Leonard Mead!

— Negócio, ou profissão?

— Acho que me pode chamar de escritor.

— Sem profissão — disse o carro de polícia, como se falando sozinho. A luz mantinha-o transfixado como um espécime de museu, agulha espetada no meio do peito.

— Pode-se dizer que sim — afirmou o Sr. Mead. Havia anos que não escrevia. Não se vendiam mais livros e revistas. Tudo continuava como sempre nas casas-tumbas, à noite, ele pensou. Os túmulos, mal-iluminados pela luz da televisão, onde as pessoas sentavam-se como os mortos, as luzes cinzentas ou multicoloridas tocando suas faces, mas nunca de fato tocando a eles.

— Sem profissão — disse a voz de vitrola, chiando. — Que está fazendo aqui fora?

— Andando — disse Leonard Mead.

— Andando!

— Só andando — ele disse, simplesmente, mas seu rosto gelou.

— Andando, só andando, andando?

— Sim, senhor.

— Andando para onde? Para que?

— Para tomar ar. Andando para ver.

— Seu endereço.

— Onze, Sul, rua Saint James.

— E há ar na sua casa; o senhor não tem um condicionador de ar, Sr. Mead?

— Sim.

— E tem uma tela para ver, na sua casa?

— Não.

— Não? — Houve uma interrupção cheia de estalidos, que em si era uma acusação.

— É casado, Sr. Mead?

— Não.

— Não casado — disse a voz policial atrás do facho, que queimava. A luz estava alta e clara, por entre as estrelas, e as casas eram cinzentas e caladas.

— Ninguém me queria — disse Leonard Mead, sorrindo.

— Não fale, a menos que seja interpelado!

Leonard Mead esperou, sob a fria noite.

— Apenas andando, Sr. Mead?

— Sim.

— Mas ainda não explicou com que propósito.

— Já expliquei; para tomar ar, e ver, e simplesmente, só para andar um pouco.

— Já fez isso muitas vezes?

— Toda noite, há anos.

O carro de polícia estava estacionado no meio da rua, com sua garganta de rádio zumbindo fracamente.

— Bem, Sr. Mead — disse.

— Isso é tudo? — ele perguntou, polidamente.

— Sim — respondeu a voz. — Por aqui. — Houve um sopro, e um estalido. A porta traseira do carro da polícia escancarou-se. — Entre.

— Espere, não fiz nada!

— Entre.

— Eu protesto.

— Sr. Mead.

Ele caminhou como um homem subitamente bêbada. Ao passar pela janela dianteira do carro, olhou para dentro. Como esperava, não havia ninguém no assento dianteiro, não havia ninguém no carro.

— Entre.

Pôs a mão na porta e olhou para o banco traseiro, que era uma pequena cela, uma jaulinha escura, com barras. Cheirava a aço rebitado. Cheirava a anti-séptico forte; cheirava a coisa muito limpa, e dura, e metálica. Não havia nada macio, ali.

— Se você tivesse uma esposa, para dar-lhe um álibi — disse a voz de aço. — Mas...

— Para onde está me levando?

O carro hesitou, ou melhor, deu um estalido e um zunido, como se a informação, em algum lugar, estivesse sendo dada por cartões perfurados, e olhos elétricos. — Ao Centro Psiquiátrico para Pesquisa de Tendências Regressivas.

Ele entrou. A porta fechou com um som abafado. O carro da polícia rodou pelas avenidas, em meio à noite, com as lanternas acesas.
Passaram por uma casa, numa rua, um momento depois, uma casa, em toda uma cidade de casas escuras, mas esta casa, em particular, tinha todas as suas luzes bem acesas, cada janela uma berrante iluminação amarela, quadrada e quente na fria escuridão.

— Aquela é minha casa — disse Leonard Mead.

Ninguém respondeu.

O carro foi pelas ruas vazias de leitos de rios, afastando-se, deixando as ruas vazias, com suas calçadas vazias, sem som nem movimento, por todo o resto da fria noite de novembro.





***
Extraído de E de Espaço © 1978 by Hemus-Livraria Editora Ltda.
Título original: The Pedestrian © 1951 by Ray Bradbury
Ilustração de Joseph Mugnaini

Análise do conto Um Som de Trovão de Ray Bradbury



Um Som de Trovão

Um conto e suas transformações: ficção científica e História 

(Publicado na Revista Tempo, Rio de Janeiro, nº 17, pp. 129-151, 2004)

Ciro Flamarion Cardoso (Professor Titular do Departamento de História da UFF)

1. Considerações teórico-metodológicas 

Estudaremos, neste artigo, um conto de ficção científica de autoria de Ray Bradbury, “Um ruído de trovão”, escrito em 1952, bem como diferentes transcodificações suas, ocorridas em 1954 (história em quadrinhos), 1989 (episódio de série de TV) e 1993 (nova história em quadrinhos). Os referenciais temáticos centrais tanto do conto quanto de suas transcodificações são, por um lado, o tempo ou, mais exatamente, a estrutura do tempo e sua possível transformação; por outro, uma preocupação política com o perigo de um regime democrático poder descambar, ao que parece com rapidez e sem grande dificuldade, para uma ditadura da pior espécie.

Visualizar on-line aqui: http://pt.slideshare.net/hermanschmitz/ciro-flamarion-cardoso-anlise-do-conto-o-som-do-trovo-de-ray-bradbury

Baixar o artigo completo aqui: http://minhateca.com.br/Herman.Schmitz/Marcianos.Cinema/Ensaios/Ciro+Flamarion+cardoso+-+An*c3*a1lise+do+conto+O+som+do+Trov*c3*a3o+de+Ray+Bradbury,519320927.pdf

Ray Bradbury — Galeria de Capas

Galeria do Google+: https://plus.google.com/u/0/photos/103998711237758699926/albums/6035193797857081793

No Pinterest: http://www.pinterest.com/hermanschmitz/ray-bradbury-painel/
Ray Douglas Bradbury (Waukegan, 22 de agosto de 1920 — Los Angeles, 6 de junho de 2012) foi um escritor de contos de ficção-científica norte-americano de ascendência sueca. Foi o terceiro filho de Leonard e Esther Bradbury. Por causa do trabalho de seu pai (era técnico em instalação de linhas telefônicas), viajou por muitas cidades dos Estados Unidos, até que em 1934 sua família fixou residência em Los Angeles, Califórnia. Morreu aos 91 anos, de causas não divulgadas.


Bradbury é mais conhecido pelas suas obras The Martian Chronicles (Crônicas Marcianas) (1950) e Fahrenheit 451 (1953). (wikipédia)

Ray Bradbury — Nós Os Marcianos

Nós os Marcianos


"O pai disse: 

— Sua mãe e eu vamos procurar instruí—los. Talvez fracassemos. Espero que não. Vimos muitas coisas e aprendemos muito com elas. Planejamos esta viagem há muitos anos, antes de vocês nascerem. Mesmo que não rebentasse a guerra, teríamos vindo para Marte, acho eu, para viver e criar nosso próprio padrão de vida. Teria sido preciso mais um século para que a civilização terrestre envenenasse Marte. Agora, é claro... 

Chegaram ao canal, longo, fresco, retilíneo e refletindo a noite. 

— Eu sempre quis ver um marciano — disse Michael. — Onde estão eles, papai? Você prometeu. 

— Estão aí — disse o pai. 

Colocou Michael nos ombros e apontou para baixo. 

Os marcianos estavam ali. Timothy começou a tremer. 

Os marcianos estavam ali — no canal — refletidos na água. Timothy, Michael, mamãe e papai. 

Da água ondulante, os marcianos ficaram olhando um tempo enorme para eles..."

Ray Bradbury - As Crônicas Marcianas, 1946

Ray Bradbury — Apresenta Theodore Sturgeon em um Antologia


Introdução à Antologia de Sturgeon: La Fuente del Unicornio
por RAY BRADBURY



Quizá la mejor manera de expresar lo que pienso de un cuento de Theodore Sturgeon sea explicar con qué minucioso interés, en el año 1940, abría por el medio cada relato de Sturgeon y le sacaba las tripas para ver qué era lo que lo hacía funcionar. Hasta ese momento yo no había vendido ningún cuento, tenía veinte años y fiebre por conocer los enormes secretos de los escritores de éxito. Miraba a Sturgeon con secreta y persistente envidia. Y la envidia, tenemos que admitirlo, es para un escritor el síntoma más seguro de la superioridad de otro autor. Lo peor que se puede decir del estilo de un escritor es que te aburre; lo más elogioso que se me ocurre sobre Sturgeon es que odiaba su maldito y eficiente ingenio. Y como él tenía lo que yo andaba buscando, originalidad (cosa siempre rara en las revistas populares), no me quedaba más remedio que volver una y otra vez a sus cuentos, atormentado de envidia, para disecarlos, desmontarlos, reexaminarles los huesos. No sé si de veras descubrí alguna vez el secreto de Sturgeon. Es muy difícil cortar el gas hilarante con un bisturí. La gracia y la espontaneidad son muy evasivas, materiales brillantes y gaseosos que pronto estallan y se esfuman. Levantas la mano para señalar un latido de fuegos artificiales en un cielo de verano, gritas " ¡Mira! ", y bajas el brazo porque, mientras tratabas de tocarla, la maravilla se desvaneció.

Sturgeon tiene muchos de los atributos de una magnífica traca con un potente trueno final. Hay en sus cuentos luces de Bengala y maravillosas culebras y volcanes de invención, humor y encanto. Y antes de emprender el viaje por este libro y sus correspondientes maravillas, quizá te convenga hacerte una radiografía de las glándulas. Porque es evidente que el señor Sturgeon escribe con las glándulas. Y si no lees con las glándulas funcionando correctamente, este libro no es para ti.

Pero escribir con las glándulas es una ocupación precaria. Muchos escritores tropiezan con sus propios intestinos y caen a una muerte terrible, entre retorcidas masas de tripas, en las fauces de la negra y muy malvada máquina de escribir. Eso no pasa con Sturgeon, porque es evidente que sus vísceras, a medianoche, proyectan un increíble resplandor sobre todos los objetos cercanos. En un mundo de falsa solemnidad y enorme hipocresía, es maravilloso encontrar cuentos escritos no sólo con ese voluminoso objeto arrugado que hay por encima de los ojos sino, sobre todo, con los vigorosos ingredientes de la cavidad peritoneal.

Ante todo, Sturgeon parece amar la escritura, y deleitarse con relatos felices de ritmo trepidante. Es cierto que algunos de los cuentos incluidos en este libro no son monumentos a la alegría sino, aviesamente, fríos y verdes edificios de miedo. Hay que recomendar este libro a esos médicos oscuramente inescrupulosos que suelen despachar los violentos extremos de enfriamiento y calentura de sus pacientes diciendo que el resultado inevitable es la gripe.

No conozco personalmente al señor Sturgeon, pero desde hace algún tiempo sus cartas estallan en mi buzón, y después de algunos días de conjeturas he llegado a la conclusión de que el señor Sturgeon es un niño que se ha escapado de su casa un día de primavera y ha buscado refugio y alimento bajo un puente, un gnomo pequeño y brillante que usa pluma y tinta rápidas y papel blanco mientras escucha, allá arriba, el trueno de un mundo intemporal. Y ese gnomo increíble, bajo su estruendoso puente, al no poder ver el mundo secreto que le pasa por encima, se ha formado sus propios conceptos acerca de esa oculta civilización. Allí arriba, ¿quién sabe?, podría ser el año 1928, o 2432, o 1979. Parte de la imagen que tiene está sacada de una manera de vivir que ha adivinado con divertida precisión a partir de los sonidos de las pisadas y de los ruidos y las voces de la gente que pasa por lo alto; el resto es pura fantasía e invención, un gigantesco carnaval distorsionado pero más real todavía a causa de su irrealidad. Nos vemos retratados en poses grotescas, en plena actuación.

Espero conocer algún día a Sturgeon. Iré a hacer alguna excursión a pie por el centro y el este, por caminos rurales y por senderos de sicómoros, y me detendré en cada puente a escuchar y mirar y esperar, y quizá una tarde de verano, en el silencio propio de esos días, miraré hacia abajo y al pie de un arco de esquisto encontraré al señor Sturgeon escribiendo con pluma y tinta. No será fácil encontrarlo, pues todavía no he entendido qué tipo de puente prefiere, si los puentes altos, metálicos y arquitectónicos como el de Brooklyn y el de San Francisco, o puentes de arroyo pequeños, olvidados, cubiertos de musgo, donde cantan los mosquitos y el silencio es verde. Cuando haya entendido las dos mitades de su escindida personalidad de escritor, iniciaré la caminata. Y si al llegar a algún puente solitario es de noche, reconoceré su escondite por el puro y brillante resplandor que emiten sus vísceras, que permitirá ver hasta el otro extremo del prado y la montaña más lejana.

Mientras tanto, felicito al señor Sturgeon diciendo que todavía lo odio .

RAY BRADBURY
Los Ángeles, 1948

Ray Bradbury - As Crônicas Marcianas (Resenha e Capas)


RAY BRADBURY
Crónicas marcianas


Ray Bradbury (nacido en 1920) ha sido considerado durante mucho tiempo como el mejor escritor norteamericano de cuentos breves. Éste fue el libro que cimentó su reputación. Es una colección de cuentos, estrechamente relacionados entre sí, acerca de la exploración y la colonización del planeta Marte. Debido al tema y al hecho de que la mayoría de los cuentos han aparecido en las insignificantes revistas de cf de finales de la década del cuarenta, es natural suponer que se trata de un libro inequívocamente de ciencia ficción. Pero, en realidad, esta calificación muchas veces se ha discutido, ya que el propio Bradbury no da muestras de interés por la ciencia como tal. Sus cohetes espaciales parecen petardos; sus marcianos, fantasmas en la noche de Halloween, mientras que el paisaje marciano es una árida versión del Medio Oeste norteamericano. Además, Bradbury era conocido como asiduo colaborador de Weird Tales (una revista de temas fantásticos y de terror) y ha publicado desde entonces El vino del estío (1957) y La feria de las tinieblas (1962), fantasías de magia infantil, muy alejados de los intereses de la cf. Ninguno de los cuentos marcianos de Bradbury apareció en Astounding S-F, la revista más importante de ciencia ficción "dura", es decir, "racionalista". El editor de esa revista, el purista John W. Campbell, había rechazado los cuentos de Bradbury. Puede ser que los cuentos tuvieran "magia", pero no había en ellos nada de física; eran casi blasfemos por su falta de rigor en cuestiones de tiempo y espacio.

Al menos así parecía. A partir de 1950 la moderna ciencia ficción se ha diversificado mucho, y el radicalismo de Bradbury hoy parece mucho más tímido. Yo, sin duda, afirmaría que Crónicas marcianas (The Martian Chronicles) pertenece a la categoría de la cf, puesto que utiliza todos los recursos de la ficción interplanetaria, así como motivos tan familiares como la telepatía, la invisibilidad y el amenazante holocausto nuclear. Lo innovador en la obra de Bradbury fue su utilización de todos estos elementos en función de sus propios fines, con prescindencia de las opiniones más generalizadas acerca de cómo debería escribirse un buen cuento de cf. Puso mucho más énfasis en el estilo y en la forma que en los detalles técnicos o en la verosimilitud científica, lo que ofendió la sensibilidad ya endurecida de editores y autores que se habían formado con las revistas norteamericanas de cf de los años treinta y cuarenta. Su recompensa fue su asombroso éxito popular y de crítica: el mundo literario se interesó en él y fue invitado a escribir para las mejores revistas literarias, así como para Hollywood. Con el clamor posterior que despertó su obra, se ha pasado por alto la influencia de Bradbury sobre el género de cf: a pesar de la oposición de ciertos círculos, se transformó en modelo para muchos escritores jóvenes, quienes aunque no lo emularon, sintieron que les había ayudado a liberarse y a ser ellos mismos.

Así pues, Crónicas marcianas es una obra históricamente importante. Hoy parece anticuada; su poesía, a veces, afectada; su tristeza, apenas algo más que sentimental; pero las mejores páginas tienen todavía una cualidad mágica. Mi cuento preferido es "Aunque siga brillando la luna", en el que una banda de maleantes de la Tierra comienza a saquear las ciudades vacías de Marte. Uno de esos hombres se rebela y gana las colinas como defensor solitario de la cultura marciana muerta. Finalmente es apresado y fusilado, pero no antes de que sus acciones hayan hecho tomar conciencia a los demás de su comportamiento erróneo. La atmósfera crepuscu-lar de este cuento impregna gran parte del resto del libro. También me gusta el capítulo llamado "Fuera de temporada", con su evocación de las naves marcianas de arena: "El viento empujó la nave sobre el antiguo fondo del mar, sobre cristales enterrados hacía mucho tiempo, y las columnas, los muelles desiertos de mármol y bronce, las ciudades muertas y las laderas moradas quedaron atrás..."

Primera edición: Doubleday, Garden City, 1950.

Tirado de: DAVID PRINGLE — Ciencia Ficción - Las 100 mejores novelas.


Veja também a arte de algumas capas deste livro: https://plus.google.com/photos/103998711237758699926/albums/5945778350194559473