Flashback: Duas vidas em rota de colisão
Samuel Cardeal
PRÓLOGO —
Onde estou?
O que está acontecendo?!
Não sei que lugar é esse, nem como vim parar aqui. Meus olhos se acostumam com o novo cenário, voltando ao foco natural. Em frente a mim, depois de um amplo painel de vidro, algumas pessoas assistem o que quer que esteja acontecendo comigo. Semblantes sérios na sua maioria, apreensivos, eu diria.
Sinto minhas mãos presas, não consigo sair do lugar. Observo com maior atenção os meus dedos tremelicantes e percebo que minha pele está mais escura, negra. Meus dedos também não são tão grossos quanto os atuais. Sinto meu corpo preso a uma cadeira, tiras de couro cerceiam todos os meus movimentos. Percebo que, assim como meus dedos, meu corpo está diferente, maior, mais robusto; não sinto a minha magreleza de sempre.
Há um burburinho no ar, várias vozes que eu não conheço conversando aos sussurros coisas que eu não consigo entender. De repente, dois homens fardados passam à minha frente. Um deles carrega um balde; o outro, uma esponja amarelada e velha. O sujeito da esponja mergulha o objeto no balde e ele retorna ensopado. Olhando para mim de uma forma doentia e maldosa, o homem coloca a esponja sobre minha cabeça, que acabo de perceber estar raspada.
Assim que aquele objeto molhado toca minha cabeça, a água começa a escorrer pelo meu rosto. Algumas gotas entram em minha boca e sinto um gosto salgado. Logo em seguida, o homem que carregava o balde sai do meu campo de visão e retorna com um objeto estranho, um tipo de mini-capacete com correias de metal. Enquanto o sujeito da esponja segura meu rosto, o outro coloca aquela coisa em mim, prendendo as correias sob meu queixo e apertando a pele do meu rosto sem o mínimo sinal de delicadeza.
Os dois homens se afastam, um deles se posta ao meu lado, de modo que consigo vê-lo com minha visão periférica. O outro eu não vejo. Sinto um desespero enorme enquanto tento me livrar das amarras que me prendem àquela lúgubre cadeira. Então eu paro, congelo de uma forma inexplicável, assim que o homem fardado ao meu lado começa a falar:
— Senhor Martin Malcolm Silva, de acordo com a lei federal, e conforme decisão de um tribunal do júri legalmente constituído, você será executado na presente data. A eletricidade passará pelo seu corpo até que seu coração pare e seu organismo não mais funcione. Deus tenha piedade de sua alma
O homem termina de falar e assente com a cabeça para alguém atrás de mim. Em seguida um ruído de eletricidade invade meus ouvidos violentamente. As luzes piscam e meu coração dispara de forma vertiginosa.
Eu não entendo o que tudo isso significa. Eu fui condenado à morte; mas eu não sou “eu”! E o que “eu” fiz para ser condenado? Agora sei que aquelas pessoas além do vidro estão aqui para me assistirem morrer. A eletricidade passará pelo seu corpo até que seu coração pare, ele disse. Mas não quero que meu coração pare!
Um homem vestindo um terno preto com um colarinho estranho se aproxima de mim. Diferente dos fardados, traz um semblante sereno, amigável. Eu quase me sinto bem ao olhá-lo nos olhos; dois olhos azuis apagados, com cataratas a lhe roubar a cor, emoldurados por uma pele enrugada, fustigada pelo tempo. Segurando um livro grosso de capa preta, ele coloca a mão sobre o meu ombro e diz:
— Deseja fazer uma última declaração, filho? — ele pergunta.
Eu não sei o que dizer. Nem mesmo sei o que está de fato acontecendo, e por que está acontecendo. A confusão toma conta de todo o meu ser, sinto vontade de chorar, e perpetuo o desejo deixando verter lágrimas encorpadas que se empossam abaixo dos meus olhos, sobre olheiras protuberantes que sinto arderem.
Minha cabeça dói; minha boca seca tem um gosto rançoso, amargo. Não sei como, nem por que, mas três palavras se repetem em minha mente, e algo indescritível e inexplicável me diz que devo proferi-las. Sem saber o que fazer, nem o que pensar, deixo que aquela sensação guie meus atos e liberto as palavras que pedem para serem ditas.
— Eu sou INOCENTE!
A luz se apaga.
Nenhum comentário:
Postar um comentário