OS MUITOS LADOS DO PRECONCEITO
Finalmente. Há mais de um século Planolândia deveria estar na prateleira dos leitores brasileiros, mas por distração (ou desleixo) dos editores brasileiros não havia nenhuma edição disponível no mercado nacional. O atraso, resolvido com esta edição, só não comprometeu a atualidade do texto, escrito pelo clérigo inglês Edwin Abbott em 1884.
Protegido da crítica, em sua primeira edição, pelo pseudônimo de "A. Square” {1}, Abbott satiriza os preconceitos da sociedade inglesa vitoriana criando um mundo de duas dimensões. Na obra, seu alter ego e narrador, "O Quadrado", mostra um mundo em que as pessoas são figuras geométricas (triângulos, quadrados, pentágonos, hexágonos etc.) e a classe social à qual pertencem é proporcional ao número de lados que elas têm e à perfeição de suas formas. Qualquer irregularidade (deficiência física) é uma desgraça punida com a morte ou com a internação em um hospital que tentará consertar o desvio. Qualquer casamento entre figuras geométricas (classes sociais) diferentes é visto com desconfiança, senão com tristeza, por parte das figuras (classes) com maior número de lados. As mulheres não têm nenhum lado, são somente uma linha e são obrigadas a entoar um canto de paz quando se deslocam pelo mundo. Uma regra que, se desobedecida, leva à execução sumária. Afinal, na perspectiva de um mundo plano, a única coisa que se vê são os lados dos triângulos, quadrados etc. Mulheres, que não têm lados, são somente um ponto e ficam quase invisíveis em Planolândia. O contato físico de uma delas com o lado de um ser mais elevado pode furá-lo, matando-o.
Mas "O Quadrado" teve a oportunidade de ir além do preconceito contra mulheres e portadores de deficiência física e foi apresentado ao mundo das três dimensões. Ficou tão fascinado que aventou a possibilidade da existência de uma quarta, quinta, sexta dimensões. Nada e tudo a ver com a Teoria da Relatividade Especial de Albert Einstein. Nada porque Abbott escreveu seu romance quando Einstein ainda usava calças curtas e não pensava em fórmulas. Tudo porque Einstein descobriu a quarta dimensão e chamou-a de tempo. Hoje os físicos acreditam que o mundo tem algo em torno de dez dimensões de espaço e uma de tempo, mas que só vemos três delas (altura, comprimento e profundidade). As outras dimensões espaciais são invisíveis de tão pequenas. A existência dessas onze dimensões faz parte da chamada teoria das supercordas, que diz, entre outras coisas, que o mundo não é feito de partículas puntuais, mas de pequeníssimas cordas que, conforme vibram de diferentes formas no espaço, criam elétrons, quarks, fótons e todas as outras partículas que conhecemos.
Abbott mirou em um elefante e acertou, sem querer, na mosca quanto à analogia e à sátira. O reconhecimento de seu talento literário foi imediato. Planolândia foi um sucesso instantâneo na Inglaterra, teve uma segunda edição no mesmo ano (1884) de seu lançamento e um prefácio escrito por Abbott em nome de "A. Square". Nele, já cansado de seu triste destino (deixo para os leitores o prazer de descobrir qual), "A. Square" deixa Abbott se expressar. O resultado é: "Ai de nós, a cegueira e o preconceito são traços comuns à humanidade em todas as dimensões". Completo: e para todos os tempos.
No século XX, Einstein construiu a sua teoria, Francis Crick e James Watson descobriram a estrutura do DNA dos seres vivos, mas nós continuamos presos aos nossos pequenos preconceitos. Infelizmente.
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Prefácio à edição brasileira por
Alessandro Cieco Engenheiro, jornalista e autor do livro Homens de Ciência (Conrad Livros)
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