SÃO PAULO, 31 DE JULHO DE 2013 - Luiz Bras (Conto)


Conto de LUIZ BRAS, cedido pelo autor, da sua antologia PARAÍSO LÍQUIDO, 2010.

Este conto rápido, escrito na melhor tradição epistolar da ficção científica, de excelente bom humor e que vem desafiar a nossa credibilidade, foi lançado primeiramente, numa coletânea intitulada Cartas do Fim do Mundo, lançada em 2009, onde cada autor foi convidado a escrever uma carta tratando do tema apocalipse.


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SÃO PAULO, 31 DE JULHO DE 2013
 


Jonas, não entre em pânico, respire fundo.


Você não tem muito tempo, o taxímetro está correndo. Os próximos três anos e meio vão passar muito rápido. É indispensável que [trecho ilegível]. Mesmo assim, sei que você precisará de pelo menos uma semana pra assimilar esta carta. Sua primeira reação será imaginar que se trata de uma brincadeira de mau gosto. Isso é o que eu imaginaria se estivesse no seu lugar. Uma piada bem elaborada, mas cretina. Tudo o que eu peço é que não perca mais de uma semana interrogando os colegas e os parentes, procurando digitais, testando o papel e a tinta, dormindo mal, comendo mal. Apesar de eu não ter como provar (estou sozinho e não há tempo!), acredite em mim: esta carta é verdadeira. Não reconhece a letra? Você mesmo a escreveu. Não fique repetindo infinitamente os mesmos exames, não passe dias no laboratório. A grafia é tua, a assinatura também. Repito: este alerta foi escrito por você. Não hoje, não ontem. Três anos e meio no futuro. Eu sou você. Se aceitar esse fato e mantiver a cabeça fria, talvez você consiga salvar algumas vidas. Incluindo a tua (nossa).

Sei que eu sou a última pessoa na face da Terra de quem você esperaria receber notícias. Mas, como eu disse, não deixe de comer ou dormir por minha causa. Não fique investigando os amigos e os desafetos, imaginando que esta carta é uma brincadeira de extremo mau gosto. Não tente descobrir quem é que está sacaneando você. Porque ninguém está sacaneando você. Acredite, no período de três anos e meio que nos separa, a vida ficou muito complicada. Eu não escreveria esta carta se houvesse outra forma de salvar a humanidade. Ou parte dela.

[Trecho ilegível.] Como daqui a quinze minutos eu estarei morto, vou direto ao ponto: em três anos e meio, se não houver um modo seguro de chegar a Marte e criar a toque de caixa uma colônia auto-sustentável, você vai morrer de maneira dolorosa. Você e quem mais estiver por perto. Sei que está pouco se lixando para o resto do país ou do planeta. Você é um incurável egoísta, sempre foi. Tão incurável que eu mesmo continuo não dando a mínima para os outros. Mas, acredite, você vai precisar de ajuda, de muita ajuda, se não quiser virar pó (eu não quero!). Enfia isso na tua cabeça: Marte. Temos que ir pra lá. Não, não discuta comigo. Sei que a lua está mais perto, mas não adianta. Só estaremos a salvo em Marte.

Se nada for feito, [trecho ilegível]. Se você não acreditar em mim, a extinção da vida na Terra acontecerá da seguinte maneira: em janeiro de 2012, insetos inteligentes ocuparão as principais capitais do mundo. De onde surgiram? Ninguém sabe. Enquanto as nações mais desenvolvidas estão preocupadas com o aquecimento global, cupins (Cryptotermes brevis) e baratas (Periplaneta americana) com QI em torno de duzentos vão tomar conta das regiões urbanas. [Trecho ilegível] será impossível. Apesar do susto, no início a convivência entre nós e eles será pacífica. A curiosidade científica falará mais alto. Trocaremos experiências e informações. Mas em seis meses esse namoro vai terminar de modo violento. Logo ficou claro que duas classes tão diferentes de seres vivos jamais conseguiriam dividir o mesmo espaço. Então teve início a guerra.

Em janeiro de 2013, metade da população humana já terá sido dizimada. Assustador, não? Isso não significa que estamos perdendo a guerra. A população global de insetos também caiu pela metade, atingida por bombas e pesticidas de última geração. Mas uma série de mutações genéticas resultará numa espécie prolífera e superconsciente de trepadeira (Clytostoma binatum), que se espalhará pelos cinco continentes. Logo homens e insetos terão que se haver com outro inimigo, num ménage à trois belicista. Porém em seis meses as três famílias serão surpreendidas por uma pane, vamos dizer, geológica. O que é isso? Mais ou menos como se todos os minerais do planeta, insultados pela violência irracional de homens, insetos e plantas, decidissem pôr fim à barbárie. Vulcões entraram em erupção. Furacões, terremotos e maremotos estão sacudindo a biosfera. Se me confundo com os tempos verbais (escrevendo ora no passado ora no futuro), é porque, preso neste bunker e à beira da morte, está sendo difícil manter a coerência.

Três dias atrás aconteceu algo mais assustador ainda. Um fenômeno absolutamente assombroso. Nem sei como explicar. Um vírus de computador. Ou algo parecido. Prepare-se, esse vírus vai se espalhar por todo o ciberespaço e contaminar pessoas, insetos e plantas. Isso mesmo: pessoas, insetos e plantas. Estamos todos contaminados. Febre, náusea e fotofobia. Delírios e alucinações. Talvez fosse mais acertado falar em câncer. Estamos todos definhando da forma mais cruel. Estamos [trecho ilegível]. A doença danificou nossos sistemas de comunicação. Tevê, rádio, cinema, telefone, internet, livros, revistas, jornais, um horror. Mas a metástase foi mais ampla, comprometendo também o sistema nervoso das pessoas. Já não consigo distinguir a fantasia da realidade. Sinto que minha mente e toda a informação transmitida por cabo ou via satélite estão entrelaçadas. Personagens de antigos desenhos animados, liderados por Pernalonga, esmurram a porta do bunker. [Trecho ilegível] tenho só uns cinco minutos, antes que Superman abra um buraco na parede à prova de cataclismo.

Essa é a situação hoje. Não duvide, o que eu acabei de revelar VAI acontecer. O fim do mundo já tem data certa: 31 de julho de 2013. Daqui a pouco eu estarei morto. Por isso esta carta. É preciso que você mude o futuro, só assim eu e você sobreviveremos. Não dá mais tempo de impedir o surgimento dos cupins e das baratas inteligentes. Eles já estão aí, conspirando nos esgotos, nos subterrâneos, escondidos. A guerra que virá é inevitável. Também não dá mais tempo de impedir a aparição das trepadeiras superconscientes (sensitivas) ou a pane geológica ou o câncer das telecomunicações ou a histeria coletiva ou [trecho ilegível], não dá, não dá. Tudo isso já está orquestrado e vai acontecer mesmo que você, o papa, a Madonna e a ONU tentem evitar. Mas ainda dá tempo de começar a pôr em prática um plano de fuga. Não hesite, não contemporize, não tergiverse. Faça exatamente o que vou dizer.

Esqueça as aulas de química e o laboratório, esqueça [trecho ilegível], nada disso terá utilidade. Concentre-se na arte de seduzir e influenciar as pessoas, também chamada de política. Ou religião.

Primeiro você precisará aliciar e doutrinar três secretários. Isso levará seis meses. Em seguida cada secretário formará três superintendentes. Isso levará três meses. Você e os três secretários aliciarão e doutrinarão as dez pessoas mais ricas do mundo enquanto os nove superintendentes coordenarão a construção de um estaleiro secreto. Isso levará mais três meses. Cada uma das dez pessoas mais ricas do mundo criará e administrará uma empresa de mil funcionários. Cada empresa ficará responsável por um setor relevante para a missão: engenharia, energia, informática, astronáutica, meteorologia, medicina, agricultura, pecuária, psicologia e (muito importante, acredite) astrologia. Isso levará mais seis meses. Não preciso repetir que toda essa atividade terá que ser realizada em absoluto segredo, preciso? Em um semestre, a partir desse momento, insetos inteligentes ocuparão as principais capitais do mundo (eu disse isso no começo). Então você, os três secretários, os nove superintendentes, os dez magnatas e os dez mil funcionários terão seis meses pra ocultar totalmente o estaleiro. Como? Camuflagem. Na verdade, supercamuflagem. Serão sete camadas. [Trecho ilegível] cada estrato. Primeiro uma cúpula de titânio e kriptonita (contra a visão de raios X). Revestindo-a, uma camada de papel-alumínio non plus ultra (contra a transmissão de pensamento). Revestindo-a, uma camada de isopor radioativo blasé (contra os satélites espiões). Revestindo-a, uma camada de esterco desidratado de lhama (contra os cães farejadores). Revestindo-a, uma camada de fibra de vidro mata-mosquito (contra o transtorno bipolar). Revestindo-a, uma camada de palha de aço cão-tinhoso (contra calúnias e difamações). E finalmente, revestindo-a, uma camada bem grossa de alho húngaro triturado (contra feitiços e mau-olhado).

A partir de janeiro de 2012, como eu disse, o mundo começará a sofrer transtornos graves e o equilíbrio [trecho ilegível]. É importante que você, os três secretários, os nove superintendentes, os dez magnatas e os dez mil funcionários estejam a salvo no estaleiro secreto, trabalhando intensamente na nave que levará todos nós a Marte. Os últimos boletins recebidos hoje informaram que [trecho ilegível], a magnetosfera foi comprimida e a distribuição de partículas energéticas foi drasticamente alterada. Também informaram que a lua está se aproximando da Terra, alterando o regime das marés. Em breve o campo gravitacional do nosso planeta fragmentará a lua. Milhares de asteroides se chocarão com a Terra. Por isso eu disse: vá pra Marte.

Você não tem muito tempo, o taxímetro está correndo. Os próximos três anos e meio vão passar muito rápido. Superman, Pernalonga, [trecho ilegível], Snoopy e Mafalda já estão quase entrando. Enviar esta carta será certamente meu último gesto. Um gesto esperançoso. Meu tempo acabou. Sei que você precisará de pelo menos uma semana pra assimilar esta carta. Sua primeira reação será imaginar que se trata de uma brincadeira de mau gosto. Mas eu juro que se nada for feito, se você não acreditar em mim, a extinção da vida na Terra começará em janeiro de 2012, com a invasão dos insetos. Então, seja inteligente. Lembre-se da Aposta de Pascal:

Partindo do pressuposto de que você não sabe se esta carta é verdadeira ou falsa, há uma probabilidade de cinquenta por cento pra cada possibilidade. Se a carta for falsa, em janeiro de 2012 os insetos não aparecerão e você terá perdido dezoito meses de sua vida, organizando uma desnecessária e ridícula expedição a Marte. Sua perda será relativamente pequena: a execração pública, o [trecho ilegível], só isso. O povo tem memória curta, em pouco tempo tudo estará esquecido. Ufa. Ninguém morrerá, principalmente você. Porém, se a carta for verdadeira, em janeiro de 2012 os insetos aparecerão e você terá trabalhado dezoito meses num projeto valioso que dois anos depois salvará sua vida e a minha. Pense nisso. Mas não demore muito pra fazer a aposta certa. Meu tempo acabou. Merda. Superman e Pernalonga já [trecho ilegível]

Jonas


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Luiz Bras nasceu em 1968, em Cobra Norato, MS. É escritor e doutor em Letras pela USP. Já publicou diversos livros, entre eles Sozinho no deserto extremo (romance), Paraíso líquido (contos), Muitas peles (artigos e ensaios), Sonho, sombras e super-heróis e Babel Hotel (romances juvenis) e, em parceria com Tereza Yamashita, os infantis Dias incríveis, A última guerra e Ganhei uma menina!

Colabora regularmente com a Folha de S.Paulo, resenhando lançamentos do mercado editorial. Mantém uma página mensal no jornal Rascunho, de Curitiba, intitulada Ruído Branco. Também mantém o blogue ObjetoNãoIdentificado: http://luizbras.wordpress.com

Em 2013, foi um dos setenta escritores da delegação brasileira que participou da Feira do Livro de Frankfurt.

O romance Sozinho no Deserto Extremo será publicado na Alemanha, em 2014, pela Arara Verlag.



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