Ilustração de Marcelo Galvan |
O Pesadelo
por Herman Schmitz
Uma das primeiras coisas que se aprende numa estação orbital é enfrentar a si mesmo. Isto é, defrontar-se com a solidão que no espaço fica dando voltas em torno a você mesmo.
Aqui na estação orbital que rodeia o satélite Saturno VI, os cinco mil quilômetros do seu diâmetro são percorridos em 134 dias terrestres.
Faltam 82 dias ainda...
Dias... O que são eles? Talvez uma vaga referência, ecos de uma rotina certamente familiar que a nave controla diariamente da Terra. Isso que ela chama de amanhecer ou anoitecer, com aromas de pinheiros e fumaças de carros, é totalmente falso, é inteiramente inútil, como o esplendor e a vastidão desses arcos na escotilha principal – os anéis de Saturno sobre a minha cabeça.
E essa outra visão, então, mais para baixo, Saturno VI, um mundo de metano, etano e propano, etileno e acetileno, dióxido e monóxido de carbono, formando um aerossol gigantesco, um enorme inseticida de nitrogênio e hidrogênio do qual se espera um dia recriar a mesma atmosfera da Terra, já que aqui só falta o calor do sol.
Observar essas coisas é lá com os computadores, que são máquinas instruídas para reagir às ínfimas alterações lá embaixo. A mim compete apenas consagrar todo o meu tempo a desfrutar deste vasto ócio.
São 134 dias, e eu sozinho aqui em Saturno VI. Sem nada o que fazer. Sem nada para fazer. E faltam 82 dias ainda.
Agora passei a perseguir os fantasmas delirantes que arrebatam minha mente: “Que fazer quando de tuas mãos surgem bruscamente dois pequenos olhos, abertos apenas por um breve instante, numa piscadela maliciosa, para sumirem logo em seguida?”
E depois, mesmo com as mãos fechadas e rígidas, elas vão subindo, aplicando ao braço a tensão de uma força inexplicável.
Em seguida, correntes de energia me sacodem e chacoalham, transformando-me numa figura bizarra que gesticula freneticamente pelos salões vazios da estação.
Essa coisa ainda me agarrará na escuridão. Aí será então meu cérebro que saltará como um coelho assustado. E não será só mais uma, serão cinco, uma dezena, talvez centenas ou milhares dessa coisa: atacando, arrasando, arrastando tudo a ruínas.
“Tem alguém aí me ouvindo?”
Nada…
Não tenho como pedir ajuda, a interferência magnética de Saturno impede a comunicação. Só tenho botões roxos e azuis piscando intermitentes.
Lá longe, no solo marciano, o comando da missão sacode a cabeça. Não há nada o que fazer. Nada. Nada. Nada.
É só acordar, vestir qualquer roupa, comer e apertar alguns botões…
É seguro que todos os deuses se enganaram. E a dor então me atinge em cheio. Tenho somente um único desejo, o de trocar esse corpo. Esse eu não o tive nunca. Um corpo novo em qualquer outro lugar, menos aqui em Saturno VI.
Estreito destino esse de corredores intermináveis até um coração que já não mais responde…
Não. Não. Não! Não. Não… não… n…
***
— Quantos dias mesmo o coração desse aí aguentou, doutor Alberto?
— Cinquenta e dois, um dos maiores tempos conseguidos no nosso simulador. Temo que o programa brasileiro da nossa base em Saturno VI atrase bastante, excelência!
— Pois é… É um lugar danado de bão… Veja como todos eles viram poetas. Bom, temos que seguir recrutando, uai.
------------------------------------------------------
Este conto pertence ao livro TERRASSOL (c) 2014
-------------------------------------------------
Leitura performática do conto "O Pesadelo" realizada pelo próprio autor, na noite de sexta feira de 14 de março de 2014, na IV Mostra da Vila Cultural Cemitério de Automóveis, projeto Vilanias, Sarau: Prosa, Poesia & Outras Delícias.
Conto kafkiano.
ResponderExcluirNão se vê utilidade em manter um cosmonauta isolado numa estação espacial.
Ainda mais sem objetivos definidos, muito menos a simulação disso.
A finalidade precípua desse programa parece ser exclusivamente,
a de desviar verbas.