O PRÊMIO DO PERIGO
Conto de Robert Sheckley
Raeder ergueu cautelosamente a cabeça acima do peitoril da janela. Viu a escada de incêndio, que descia para um beco estreito. Havia no beco um carrinho de criança estragado e três latas de lixo. Enquanto olhava, um braço vestido de preto esgueirou-se por trás da lata de lixo mais afastada, empunhando um objeto brilhante. Raeder abaixou-se, rapidamente. Uma bala estilhaçou a janela e foi penetrar no teto, lançando sobre ele fragmentos de reboco.
Não podia contar com o beco. Estava vigiado, assim como a porta.
Estendeu-se de comprido sobre o linóleo lascado, espiando o buraco da bala no teto e escutando os ruídos que vinham da porta. Era um homem alto, de olhos injetados e barba de dois dias. Suor e cansaço haviam traçado linhas em seu rosto . O medo alterara seus traços, enrijecendo músculos e destacando o latejar dos nervos. O resultado fora surpreendente: agora, seu rosto ganhara caráter, assumira uma nova forma, pela expectativa da morte.
Um pistoleiro ficara no beco e havia dois na escada. Estava encurralado. Estava morto.
Contudo - pensava Raeder - ainda respirava e podia mover-se. Mas isso devia-se unicamente à ineficiência da morte. Que se encarregaria dele dentro de poucos minutos. Que distribuiria rombos em seu rosto e seu corpo, e daria artísticos toques de sangue em suas roupas, ajeitando seus membros em alguma das grotescas posições do balé funéreo.
Raeder mordeu o lábio, bruscamente. Desejava viver. Devia existir um meio.
Virou-se de bruços e examinou o minúsculo apartamento de solteiro em que fora cercado pelos assassinos. Era um perfeito ataúde - de um só quarto. Havia a porta, que estava guardada e a saída de incêndio, também sob vigia. Além disso, somente o pequeno banheiro sem janelas.
Rastejou para o banheiro e levantou-se. No teto, fora cavada uma abertura de uns dez centímetros de largura. Se conseguisse alargá-la e por ali passar para o apartamento de cima…
Ouviu uma pancada surda. Os pistoleiros estavam impacientes. Haviam começado a derrubar a porta.
Estudou o buraco do teto. Era inútil perder tempo com ele. Não poderia alargá-lo a tempo.
Estavam se lançando contra a porta, gemendo a cada vez que a forçavam. A fechadura cederia logo ou então as dobradiças seriam arrancadas dos batentes podres. A porta acabaria vindo abaixo e aqueles dois homens de rostos inexpressivos entrariam, batendo o pó dos paletós…
Mas, certamente, alguém o ajudaria! Tirou do bolso o pequeno televisor. A imagem apareceu borrada, mas não se preocupou em acertá-la. O som era perfeitamente nítido.
Ouviu a voz bem modulada de Mike Terry dirigindo-se à sua vasta audiência.
-…numa situação terrível -dizia ele. -Sim, senhoras e senhores, Jim Raeder encontra-se numa situação apavorante. Como recordam, ele havia-se escondido num hotel ordinário da Broadway sob um nome suposto. Parecera-lhe o mais seguro. Entretanto, o ascensorista o reconheceu e passou a informação ao bando dos Thompson.
A porta rangia sob as repetidas pancadas. Raeder, com a mão crispada no televisor minúsculo, escutava.
- Jim Raeder conseguiu escapar por um tris do hotel. Perseguido de perto, entrou numa casa de cômodos - o número cento e cinquenta e seis da Avenida West End. Tinha a intenção de escapar pelo telhado. E era boa ideia, senhoras e senhores, que poderia ter dado resultado. Mas a porta do sótão estava trancada. E tudo indicava que tivesse chegado ao fim… quando Raeder verificou que o apartamento sete estava desocupado e lá entrou…
Terry fez uma pausa, para ganhar ênfase e exclamou:
- Apenas para ficar encurralado! Como um rato numa ratoeira! O bando dos Thompson está pondo a porta abaixo!
E a saída de incêndio está sendo vigiada! Nossa equipe com a câmera instalada num prédio vizinho, dará neste momento aos senhores um close da cena. Senhoras e senhores… muita atenção! Será que ainda restam chances a Jim Raeder?
- Não me resta a mínima chance - murmurou Raeder, banhado de suor naquele banheiro minúsculo e escuro, escutando o ruído crescente das pancadas contra a porta.
- Um momento! - bradou Mike Terry. - Não desligue, Jim Raeder! Continue sintonizando conosco! Talvez ainda haja esperança! Estamos recebendo o chamado de um telespectador - que ligou o nosso "telefone dos Bons Samaritanos! Esta pessoa acha que pode ajudá-lo, Jim! Está me ouvindo, Jim Raeder?"
Raeder aguardou, com o ruído das dobradiças estalando na madeira apodrecida a ferir-lhe os ouvidos.
- Não perca tempo, meu amigo, - apressou Mike Terry - qual é o seu nome?
- Eh… Felix Bartholomew.
- Não precisa ficar nervoso, sr. Bartholomew. Pode falar.
- Sim… está bem… Sr. Raeder… disse a voz trêmula de velho - …eu morei muito tempo no um-cinco-meia na Avenida West End. Aí nesse apartamento em que está agora, sr. Raeder. Aí mesmo. Olhe, o banheiro desse apartamento tem uma janela, sr. Raeder… Não parece porque foi pintada - mas é uma…
Raeder enfiou o televisor no bolso. Verificou onde ficava a janela e chutou-a. O vidro se espatifou, deixando penetrar uma claridade ofuscante. Arrancando o que reatara da esquadria, Raeder olhou para fora.
Seria uma queda violenta até o pátio de concreto, lá embaixo.
As dobradiças cederam. Ele ouviu quando a porta foi aberta. Passou com sacrifício pela janela, pendurou-se nas pontas dos dedos por um instante e por fim, deixou-se cair.
O choque foi atordoante. Ele ergueu-se, ainda tonto. Um rosto surgiu na janela do banheiro.
- Que azar! - disse o homem, inclinando-se para fora e fazendo cuidadosa mira com um 38.
Neste mesmo instante, uma bomba de fumaça explodiu no banheiro.
O tiro do pistoleiro perdeu-se. Ele virou-se, praguejando. Mais bombas de fumaça explodiram, desta vez no pátio, encobrindo a figura de Raeder.
Do pequeno televisor que pusera no bolso, veio-lhe a voz de Mike Terry, gritando histericamente.
- Depressa, corra! A voz de Terry estava alterada. - Corra, Jim Raeder, que sua vida está em jogo! Aproveite agora, enquanto os pistoleiros estão desorientados com a fumaça! E agradeça à Boa Samaritana Sarah Wintera, da Rua Edgar 3412, Brockton, Massachussets, que forneceu cinco bombas de fumaça e pagou a diária de um homem para atirá-las!
Já mais calmo, Terry prosseguia:
- A senhora acaba de salvar a vida de um homem, Sra. Winters. Poderia dizer aos telespectadores qual foi a sua…
Raeder não conseguiu ouvir mais. Correu pelo pátio enfumaçado, esquivando-se dos varais de roupa e ganhou a rua.
Cambaleando de exaustão e abalado pela falta de alimento e sono, ele caminhou pela Rua 63, curvando os ombros para diminuir de tamanho.
- Espere!… Você!
Raeder virou-se. Sentada na escada de uma casa velha, uma mulher de meia idade examinava-o atentamente.
- Você é Raeder, não? O tal que estão procurando para matar?
Raeder tratou de se afastar.
- Venha cá para dentro, Raeder - disse a mulher.
Talvez fosse uma armadilha. Mas Raeder sabia que dependia da generosidade e das boas intenções das pessoas. Ele era o seu representante - o homem comum, metido em apuros. Sem elas, estaria perdido. Com elas, nada poderia acontecer-lhe.
Confie nas pessoas, tinha-lhe dito Mike Terry. Elas não o decepcionarão.
A mulher o conduziu até à sala de visitas. Mandou que se sentasse e saiu em seguida, voltando imediatamente com um prato de cozido.
Permaneceu de pé, observando-o enquanto comia, como uma pessoa que olhasse os macacos do zoológico comendo amendoins.
Duas crianças surgiram da cozinha e vieram olhá-lo. Três homens de macacão saíram de um quarto com uma câmera de televisão e assestaram-na sobre ele. Havia na sala um televisor grande e, enquanto comia, Raeder acompanhava no vídeo a imagem de Mike Terry, que falava com sua voz profunda e sincera, em tom preocupado.
- Ei-lo aí, meus caros telespectadores - dizia ele. - O nosso Jim Raeder, fazendo sua primeira refeição decente destes últimos dois dias. Nossas equipes volantes têm feito verdadeiros prodígios na realização desta cobertura. Obrigado, rapazes… Amigos, Jim Raeder encontrou abrigo provisório em casa da Sra. Velma O'Dell, da rua 63 número 343. Nós lhe agradecemos, Boa Samaritana Velma. É comovedor ver como pessoas de todas as condições de vida acolhem Jim Raeder em seus corações!
- Trate de andar depressa - disse a Sra. O'Dell.
- Sim, senhora - murmurou Raeder.
Não quero saber de tiroteio em meu apartamento.
Eu já estou quase terminando, mesmo.
Uma das crianças perguntou:
- Eles não vão matá-lo agora?
- Cale a boca intimou a Sra. O' Dell.
- Exatamente, Jim - retomou Terry, em tom encoraja dor. - Você precisa andar depressa. Seus inimigos não estão muito longe. E eles não são gente estúpida, Jim. Perversos, cruéis e desumanos, sim! Mas não estúpidos. Estão acompanhando uma trilha de sangue do sangue desse talho em sua mão, Jim!
Raeder até então não percebera que cortara a mão nos vidros da janela.
- Espere - vou lhe fazer um curativo disse a Sra. O'Dell. Raeder levantou-se, deixando-a envolver sua mão com atadura. Em seguida, ela deu-lhe uma japona marrom e um desabado chapéu cinza.
- Eram de meu marido - disse ela.
- E agora tem um disfarce, telespectadores - comentou Mike Terry, deliciado. Isto é algo inteiramente novo! Incógnito! E faltam-lhe somente mais sete horas, para ficar definitivamente a salvo!
- Pode ir embora - determinou a Sra. O'Dell.
- Já estou indo, senhora disse Raeder. Obrigado.
- Acho o senhor estúpido - acrescentou ela. - Só alguém muito estúpido pode-se meter nisso.
- Sim, senhora.
Não vale a pena.
Raeder agradeceu novamente e saiu. Dirigindo-se à Broadway, tomou o metrô para a Rua 59, ali, apanhou um que seguia para a Rua 86. Comprou um jornal ao descer e embarcou imediatamente no expresso para Manhasset.
Examinou o relógio. Faltavam ainda seis horas e meia.
O trem subterrâneo cruzava velozmente sob Manhattan. Raeder cochilava, ocultando sob o jornal a mão enfaixada e com o chapéu puxado sobre o rosto. Teria sido reconhecido por alguém? Despistara, afinal, o bando dos Thompson? Ou haveria alguém telefonando para eles, naquele momento?
Perguntava-se sonolentamente se já teria escapado da morte. Ou se continuava sendo apenas um cadáver engenhosamente animado, ainda em movimento devido à ineficiência da morte. (Santo Deus, a morte anda vagarosa, ultimamente! Jim Raeder continuou a circular durante horas, após morrer, e chegou inclusive a responder perguntas que lhe fizeram, antes de poder ser enterrado decentemente!)
Raeder despertou, sobressaltado. Sonhara com alguma coisa… desagradável. Não conseguia lembrar-se do que fora.
Cerrou novamente os olhos e recordou com um certo espanto o tempo em que vivia sem complicações.
Fazia dois anos. Ele era então um rapagão simpático, que trabalhava como ajudante de um motorista de caminhão. Não tinha talento. E era modesto demais para ter sonhos.
Mas o motorista, um sujeito pequeno e de cara miúda, tinha sonhos por ele.
- Por que não tenta um desses "shows" de televisão, Jim? Se eu tivesse uma aparência como a sua, estaria lá. Eles gostam de sujeitos comuns, simpáticos, sem muita coisa na cabeça. Para concorrer… Todo mundo aprecia tipos assim. Por quê não da uma olhada nisso?
E ele resolvera examinar direito o caso. O dono do canal de televisão que procurara, explicou-lhe os detalhes.
- É isso, Jim - o público não quer mais saber de atletas perfeitamente preparados, de reflexos condicionados e coragem profissionalizada. Quem vai se comover com sujeitos assim? Quem vai se identificar com eles? O povo quer ver coisas eletrizantes, é claro, mas não realizadas por um cara que faz daquilo um negócio altamente rendoso. É por isso que o esporte organizado está em decadência. E é essa a razão do sucesso dos espetáculos de emoção e mistério.
- Eu entendo - dissera Raeder.
- Faz seis anos, Jim, o Congresso aprovou a Lei de Suicídio Voluntário. Na ocasião, a velharia do Senado falou à beça a respeito de livre arbítrio e autodeterminação. Pura besteira. Sabe o que a Lei representa realmente? Que os amadores podem arriscar a vida pela nota gorda - e não somente os profissionais. Antigamente, era preciso ser profissionalizado no box, no futebol ou no hóquei, para ser legalmente usado como caixa de pancada, a troco de dinheiro. Agora, porém, essa possibilidade está franqueada a indivíduos comuns, como você, Jim.
- Eu entendo - repetira Jim.
- É uma possibilidade fabulosa. Veja o seu caso.
Você não é melhor do que ninguém, Jim. Tudo aquilo que você pode fazer, outros também podem. Você é o homem médio. Considero-o um bom tipo para os shows de emoções.
Raeder dera largas à imaginação. Os shows de televisão pareciam-lhe o caminho certo da fortuna para um sujeito simpático, jovem, sem talentos especiais e sem preparo. Mandara uma carta para o programa "A lei do acaso" e incluíra uma fotografia sua.
Seus produtores interessaram-se por ele. A organização JBC investigara e finalmente concluíra que ele era mediano o suficiente para satisfazer ao telespectador mais exigente.
Haviam conferido sua ascendência e sua filiação. Finalmente, fora convocado a New York e entrevistado pelo sr. Moulian.
Moulian era um sujeito moreno, de grande vitalidade, que mascava chicle enquanto falava.
- Você serve - dissera, abruptamente.
- Mas não para "A lei do acaso". Vai aparecer em "Vertigem". Um programa diurno de meia hora no Canal Três.
- Puxa! - exclamara Raeder.
- Não me agradeça. São mil dólares para o vencedor e o segundo colocado, e um prêmio de consolação de cem dólares para o perdedor. Mas isso não tem importância.
- Está certo.
- "Vertigem" é um programa menor. A organização JBC utiliza-o como campo de provas. O vencedor e o segundo colocado de "Vertigem" apresentam-se depois em "Emergência". As verbas já são bem melhores em "Emergência".
- Eu estou sabendo, senhor.
- E, se você sair-se bem no "Emergência", passará então para a programação de primeira linha, em shows como "A lei do acaso" e "Perigo submerso", que são transmitidos de costa-a-costa e oferecem prêmios fabulosos. É a partir daí que surgem as compensações. Quem estabelecerá os limites, é você próprio.
- Farei o possível, senhor - dissera Raeder.
Moulian interrompera a mastigação do chicle por um instante e dissera, quase com reverência:
- Está ao seu alcance, Jim. Lembre-se disto. Você é o povo e o povo é capaz de fazer qualquer coisa!
Sua maneira, ao dizer isso, fizera com que Jim momentaneamente lamentasse o sr. Moulian, que era moreno, tinha cabelos ondulados e olhos saltados, e, portanto, obviamente não fazia parte do povo.
Haviam-se despedido. Depois, Raeder assinara um documento isentando a JBC de quaisquer responsabilidades, caso viesse a perder a vida, algum membro ou a sanidade no decorrer da competição. E assinara também um requerimento, invocando a Lei de Suicídio Voluntário. Era uma exigência legal, uma mera formalidade.
Três semanas depois, apresentara-se em "Vertigem".
O programa observava a forma clássica das corridas de automóveis. Motoristas inexperientes recebiam carros de corrida americanos e europeus, nos quais disparavam um percurso homicida de vinte e cinco quilômetros.
A prova fora um pesadelo de pneus fumegantes e derrapagens estridentes. Raeder mantivera-se atrás, deixando que os carros mais avançados se fossem espatifando contra os barrancos das sucessivas curvas. Quando avançara para disputar o terceiro posto, um Jaguar guinara à sua frente, abalroando um Alfa Romeo e os dois precipitaram· se por um campo arado.
Raeder arremetera então, visando a colocar-se em segundo lugar nos cinco quilômetros finais, mas não conseguira ultrapassar. Escapara por pouco de ser eliminado numa curva em cotovelo, e a custo conseguiria fazer seu carro voltar à estrada, mantendo a terceira colocação. Faltavam cem metros para a chegada, quando o líder da prova partira para uma ponta e desta forma, Jim achara-se em segundo lugar ao fim da corrida.
Conseguira, assim, embolsar mil dólares . Recebera cartas de quatro fãs, uma dama de Oshkosh enviara-lhe um par de luvas de presente e fora convidado a aparecer em "Emergência".
Ao contrário dos outros, "Emergência" não era um programa de competições. Focalizava, em vez disso, a iniciativa individual. Antes de sua apresentação, Raeder fora inoculado com um narcótico não condicionante. Acordara na cabine de um avião, voando a três mil metros de altitude sob pilotagem automática. O indicador de combustível acusava tanques quase vazios. Não havia paraquedas. Esperava-se que Raeder conseguisse pousar o aparelho.
Evidentemente, ele não tinha o mínimo conhecimento de pilotagem.
Experimentara cautelosamente os controles, lembrando-se de que o concorrente da semana anterior recobrara a consciência em um submarino, acionara uma válvula indevida e morrera afogado.
Milhares de telespectadores acompanhavam fascinados aquele homem - uma criatura igual a qualquer um deles - enfrentando a situação da mesma maneira pela qual eles a enfrentariam.
Jim Raeder era um deles. Tudo que ele conseguisse, também eles conseguiriam. Afinal, era um elemento representativo do povo.
Raeder conseguira trazer o aparelho ao solo de forma muito aproximada a uma aterrissagem. O aparelho capotara várias vezes, mas seu cinto de segurança o mantivera firme. E, ao contrário da expectativa geral, o motor não chegou a se incendiar.
Ele arrastara-se para fora doa destroços com duas costelas quebradas, três mil dólares de prêmio e a oportunidade de, após a convalescença, aparecer no programa "Torero".
Finalmente, um programa de categoria! "Torero" oferecia um prêmio de dez mil dólares. O concorrente precisava apenas liquidar um grande touro Miura com uma espada, na antiga tradição espanhola.
A luta fora realizada em Madri, uma vez que as touradas eram proibidas nos Estados Unidos, mas a televisão transmitiria internacionalmente o evento.
Raeder tivera a sorte de contar com uma boa "cuadrilla". Haviam simpatizado com aquele americano grande e lerdo. Os picadores empenhavam-se a fundo em seus lances, procurando reduzir a velocidade do touro, para ajudá-lo. Por sua vez os "banderilleros" faziam o possível para desequilibrar o animal, antes de cravarem-lhe suas "banderillas". E até mesmo o segundo matador, um indivíduo melancólico de Algiceras, cuidou de esgotar o touro ao máximo, com um elaboradíssimo trabalho de capa.
Mas, ao término desses movimentos preliminares, Jim Raeder encontrara-se plantado na arena, agarrando com a mão esquerda a "muleta" encarnada, a espada firme na direita, diante de um imenso touro negro de olhos injetados e cornos pontiagudos.
Ouvira alguém gritar:
- Vá direto aos pulmões, "hombre"! Não banque o herói! - Vá direto aos pulmões!
Mas Jim lembrava-se apenas do que o instrutor dissera-lhe em New York: segure a espada com firmeza e trate de cravá-la por cima, entre os chifres.
Enfim, o momento. A espada resvalara sobre o osso e o touro o arremessara ao ar.
Erguera-se do chão, miraculosamente ileso, recebera outra espada que lhe ofereciam e mais uma vez enfrentou o touro, de olhos fechados. O deus que protege as crianças e os idiotas deve tê-lo guiado, pois a espada penetrara como agulha na manteiga. O touro parecia surpreendido, fitara-o com um ar de incredulidade, e caíra lentamente como um balão esvaziado.
Parte da sua inocência havia sido perdida. Estava, já então, convencido de que correra os riscos absurdos por dinheiro miúdo. O grosso da finança estava ainda à frente.
E ele se prontificara a jogar tudo que tinha numa cartada realmente digna.
Por isso, enfrentara o "Perigo Submerso", um programa patrocinado pelo Sabonete Fairlady. Equipado com máscara, aqualung, cinto de chumbo, pés de pato e faca, ele e mais quatro concorrentes haviam mergulhado nas águas do mar das Caraíbas, acompanhados por uma equipe de televisão encerrada numa jaula de proteção. A finalidade do mergulho era localizar e trazer à tona um tesouro que o patrocinador escondera no local.
O mergulho submarino não é uma atividade especialmente perigosa. O patrocinador, entretanto, havia adicionado alguns riscos para tornar mais vivo o interesse do público. Distribuíra pela região várias espécies de tubarões, polvos-gigantes, moreias, corais venenosos, e outros perigos das profundezas.
Estabelecera-se uma disputa acesa. Um concorrente da Flórida descobrira o tesouro numa fenda profunda, porém, foi apanhado por uma moreia agressiva. Outro dos mergulhadores recolheu o tesouro, e logo em seguida foi interceptado por um tubarão. A água de um azul esverdeado tornara-se escura de sangue, e isso resultava numa imagem magnífica na televisão em cores.
O tesouro abandonado afundava lentamente e Raeder mergulhou em seu encalço, fazendo estourar um tímpano, devido à profundidade excessiva. Depois de safá-lo a custo dos corais, livrou-se do seu cinto de chumbo e rumou para a superfície. A uma profundidade de dez metros, teve que disputar o tesouro com outro mergulhador.
Fintaram-se mutuamente com suas facas. Num golpe súbito, o outro marcara o peito de Raeder com um talho. Mas a experiência já dera a Raeder o autocontrole de um veterano e ele abandonara sua faca, usando a mão livre para arrancar o bocal do aqualung do adversário.
Fora o suficiente. Raeder viera à tona e apresentara o tesouro ao barco que aguardava. Verificara-se, então, tratar-se de um pacote do Sabonete Fairlady - "O maior de todos os tesouros".
Aquilo rendera-lhe vinte e dois mil dólares em dinheiro e prêmios, trezentas e oito cartas de fãs e uma proposta das mais interessantes de uma garota de Macon, que ele considerara com muita atenção. Recebera tratamento gratuito do corte no peito e do tímpano estourado, além de várias inoculações para neutralizar a infecção causada pelos corais.
O melhor de tudo, porém, fora o convite recebido para participar do maior de todos os programas de emoções - "Sob a sombra do perigo".
E fora então que tivera início a maior das encrencas.
O metrô fez uma parada, despertando-o de seu devaneio. Raeder levantou o chapéu e reparou que, do outro lado do carro, um homem o observava fixamente e cochichava com uma dama corpulenta. Será que o teriam reconhecido?
Levantou-se assim que as portas se abriram e consultou o relógio. Faltavam ainda cinco horas.
Ao sair da estação da Manhasset, tomou um táxi e mandou o motorista tomar o rumo de New Salem.
- New Salem? - perguntou este, examinando-o pelo retrovisor.
- Exatamente.
O motorista ligou seu transmissor.
- Passageiro para New Salem. É isso mesmo: New Salem.
O táxi arrancou. Raeder franziu o cenho, imaginando se aquilo não teria sido um sinal. Era um hábito comum dos choferes de táxi comunicar o destino à central, sem dúvida. Mas havia algo na voz daquele homem…
- Vou ficar aqui mesmo - informou Raeder.
Pagou a corrida e começou a caminhar por uma e estreita estrada secundária que avançava em curvas por entre alguns bosques esparsos. A vegetação era muito rala e baixa demais para servir de abrigo. Raeder prosseguiu, em busca de um lugar para se esconder.
Um caminhão pesado aproximava-se. Jim continuou andando e baixou ainda mais a aba do chapéu sobre a testa. E o caminhão já estava junto dele, quando ouviu uma voz nervosa que se projetou do televisor em seu bolso:
- Cuidado!
Atirou-se na valeta. O caminhão passara raspando por ele e já derrapava numa freada. O chofer gritou:
- Lá vai ele! Atire, Harry! Atire!
As balas arrancaram folhas do arvoredo em torno de Raeder, que enveredava pelo bosque.
- Aconteceu novamente! exclamava Mike Terry, com a sua voz estridente de excitação. - Está parecendo que Jim Raeder está se deixando acomodar numa falsa sensação de segurança. Isso é loucura, Jim! Você não pode pôr sua vida em risco, dessa maneira! Os homens que o perseguem são assassinos! Tome cuidado, Jim, pois faltam ainda quatro horas e meia de programa!
O motorista dava instruções:
- Claude, Harry, façam a volta com o caminhão. Ele está cercado!
- Eles vão cercá-lo, Jim Raeder! - gritava Mike Terry. - Mas ainda não o pegaram. E agradeça à Boa Samaritana Susy Peters, da Rua Elm nº 12 por aquele grito de advertência que ela deu quando o caminhão ia apanhá-lo… Vejam, senhores telespectadores, o helicóptero da nossa reportagem acha-se sobrevoando o local. Como todos podem ver, Jim Raeder procura escapar correndo, e os pistoleiros seguem em seu encalço, tentando cercá-lo.
Jim atravessara cerca de cem metros de vegetação, quando viu-se numa estrada larga de concreto, tendo pela frente um outro bosque ralo. Um dos pistoleiros avançava rapidamente em sua direção, pela retaguarda. O caminhão fora levado por um atalho próximo e ganhara a estrada um pouco adiante. Estava agora a cerca de um quilômetro e dirigia-se para ele.
Em sentido contrário, aproximava-se um carro. Raeder correu para o meio da estrada, acenando freneticamente. O carro parou.
Raeder atirou-se para dentro. A mulher obrigou o carro a derrapar numa curva em U. Uma bala estilhaçou o para-brisa. Pisando fundo no acelerador, a loira investiu contra o pistoleiro que se pusera no meio da estrada, quase atropelando-o.
O carro ganhou distância antes que o caminhão se aproximasse o suficiente para alvejá-lo.
Raeder recostou-se e fechou os olhos com força. A mulher concentrou-se na direção, acompanhando o caminhão através do retrovisor.
- Aconteceu mais uma vez! - berrou Mike Terry, eufórico. - Jim Raeder foi novamente arrancado das garras da morte, graças à ajuda da Boa Samaritana Janice Morrow, residente à Avenida Lexington 433, em New York. Os senhores telespectadores por acaso já terão visto alguma coisa parecida? A coragem com que a Srta. Morrow enfrentou uma verdadeira saraivada de balas, para resgatar Jim Raeder de uma situação inteiramente desesperadora? Entrevistaremos posteriormente a Srta. Morrow, para colher suas impressões. Neste momento, enquanto Jim Raeder afasta-se à toda velocidade - talvez rumo à segurança, talvez rumo a novos perigos - queremos apresentar-lhes a mensagem simpática do nosso patrocinador. Mas não se afastem: restam ainda quatro horas e dez minutos até que Jim Raeder se veja novamente em segurança absoluta. E enquanto isto, tudo pode acontecer!
- Está bem - disse a loira. Não estamos mais no ar. Raeder diga-me agora: que diabo está havendo com você?
- Ahn…? - articulou Raeder, vagamente. A moça devia ter pouco mais de vinte anos. Tinha um ar eficiente, atraente, mas intocável. Raeder observou que seus traços eram delicados e que tinha uma figura esguia. E notou também que ela parecia furiosa.
- Moça - disse ele - não sei como agradecer a sua…
-Não perca tempo - retrucou Janice Morrow. - Não pense que sou Boa Samaritana. Trabalho para a Organização JBC.
- Então o próprio pessoal do programa mandou me salvar?
- Eis uma descoberta brilhante - foi o comentário irônico.
- Mas, por quê?
- Ouça, Raeder, esse programa nos custa caríssimo. E é preciso que resulte num bom espetáculo. Se o nosso índice cair, estaremos todos na rua, vendendo barbatanas de colarinho. E você está colaborando para isso.
- Como?… Por quê?
- Porque está simplesmente péssimo! Um fracasso completo. Por acaso está pensando em cometer suicídio? Será que não aprendeu nem um pouco a cuidar melhor da pele?
- Estou fazendo tudo o que posso.
- Os Thompsons já poderiam tê-lo apanhado umas vinte vezes a esta altura. Receberam instruções para agir com calma, prolongar o jogo. Mas você está tornando inteiramente inútil a boa vontade deles. Estão cooperando, mas também há um limite. Se eu não tivesse aparecido, eles teriam sido obrigados a matá-lo - o programa no ar ou não.
Raeder encarou-a, admirado de que uma criatura tão bonita pudesse falar daquela maneira. Ela lançou-lhe um olhar e logo voltou a concentrar-se na estrada.
- Não me olhe desse modo - ordenou. - Você escolheu pôr em risco sua vida por dinheiro, meu velho. E dinheiro à beça! Sabia muito bem como era o negócio. Não banque o pobre coitado inocente que descobre estar sendo perseguido por um bando de assaltantes. A história é bem diferente.
- Eu sei - admitiu Raeder.
- Se não for capaz de viver bem, pelo menos trate de morrer bem.
- Você não diz isto a sério - sugeriu Raeder.
- Não ponha a mão no fogo por isso… Restam-lhe ainda três horas e quarenta minutos até o fim do programa. Se conseguir manter-se vivo, ótimo. A nota é sua. Mas, se não for capaz, procure pelo menos portar-se à altura do dinheiro do prêmio.
Raeder concordou, fitando-a demoradamente.
- Dentro de poucos instantes, estaremos de novo no ar. Meu carro vai sofrer um enguiço e terei que abandoná-lo. Os Thompsons vão jogar tudo agora. Procurarão liquidá-lo quando possível, e o mais cedo possível. Percebe?
- Sim - disse Raeder. - Mas se eu escapar, poderei voltar a vê-la algum dia?
Ela mordeu o lábio, indignada.
- Está me achando com cara de idiota?
- Não. Apenas gostaria de vê-la novamente. Poderia…?
Ela encarou-o, curiosamente.
- Não sei. Esqueça isso. Já está quase na hora. Creio que você terá mais chance aí nesse bosque à direita. Pronto?
- Sim. Onde posso encontrá-la? Depois disso eu quero dizer.
- Oh, Raeder, você não está prestando nenhuma atenção. Atravesse de uma vez esse mato, e acabará saindo num barranco que existe aí atrás. Não é grande coisa, mas você estará mais abrigado.
- Onde é que posso encontrá-la? - repetiu Reader.
- Meu nome consta no Catálogo de Manhattan. Ela parou o carro.
- Está bom, Reader - agora trate de correr.
Ele abriu a porta.
- Espere! Ela inclinou-se e beijo-lhe os lábios.
- Boa sorte, seu idiota. Se escapar procure-me.
E então ele viu-se de novo a pé, correndo pelo bosque a dentro. Passou por alguns ciprestes, depois pinheiros, deixou para trás várias casas isoladas, em cujas janelas apinhavam-se rostos curiosos. Algum residente de algumas daquelas casas deveria ter orientado os pistoleiros, pois eles vinham logo atrás dele, quando chegou ao barraco esburacado. Aquelas criaturas tranquilas, educadas e cumpridoras da lei não desejavam que ele escapasse, pensou Reader, melancolicamente. Faziam questão de ver uma morte. Ou talvez preferissem vê-lo escapar da morte por um tris.
No fim, dava tudo na mesma, realmente.
Escorregou, barranco abaixo, até encontrar-se encoberto por algumas moitas fechadas. Deteve-se, então, e ficou inteiramente imóvel. Os Thompsons surgiram no alto, de ambos os lados do barranco, andando com cuidado, examinando cautelosamente o terreno. Raeder prendeu a respiração, vendo-os avançar em sua direção.
Ouviu a explosão súbita de um revólver. Mas o pistoleiro havia apenas baleado um esquilo. Este estremeceu por um instante e imobilizou-se, em seguida.
Escondido nas moitas, Raeder ouviu o helicóptero de reportagem sobrevoando-o. Julgou que deveria haver câmeras focalizadas sobre ele. Era bem possível. E se estivesse observando, talvez um Bom Samaritano se decidisse a ajudá-lo.
Por isso, Raeder ergueu a cabeça para olhar o helicóptero, compôs o rosto numa expressão reverente, juntou as mãos e rezou. Rezou sem palavras, pois os telespectadores não apreciam ostentação religiosa. Mas seus lábios se moviam. E isso é um direito de qualquer cidadão.
Na verdade, em seus lábios havia uma sincera oração. Uma vez, um surdo com prática em leitura de lábios, desmascarara um fugitivo que simulava rezar - quando, realmente, limitava-se a recitar a tabuada. Pouca sorte do sujeito!…
Raeder terminou sua oração. Examinando o relógio, tinha ainda quase duas horas pela frente.
E não desejava morrer. Não valia a pena, não
importa qual fosse o prêmio. Só podia estar louco, inteiramente
desequilibrado, no dia em que concordara em participar.
Mas tinha a consciência de que não fora assim. Lembrava-se perfeitamente de que o seu equilíbrio era absoluto.
Uma semana antes, num estúdio intensamente iluminado, fora entrevistado em "À sombra do perigo" e Mike Terry em pessoa o cumprimentara.
- Sr. Raeder dissera ele, solenemente - já tem conhecimento das normas do jogo do qual deseja participar?
Raeder confirmara.
- Se você aceitar, Jim Raeder, tornar-se-á um homem caçado durante sete dias. Assassinos irão persegui-lo, Jim. Pistoleiros experientes, homens procurados pela lei por outros crimes e que obtiveram imunidade para este assassínio particular, através da Lei do Suicídio Voluntário. Eles irão empenhar-se em matá-lo, Jim. Você percebe.
- Sim, eu sei disso - respondera Reader. E sabia também dos duzentos mil dólares que receberia, se sobrevivesse à semana crucial.
- Quero ter isso bem claro, Jim Raeder. Não obrigamos ninguém a pôr sua própria vida em jogo.
- Eu aceito o jogo - dissera Raeder.
Mike Terry voltara-se para a plateia do estúdio.
Senhoras e senhores, tenho aqui a cópia de um teste psicológico minucioso ao qual Jim Raeder foi submetido por uma organização especializada inteiramente imparcial. Enviaremos cópias como esta àqueles que as desejarem mediante o pagamento de vinte e cinco centavos correspondente ao custo de remessa. O teste demonstra que Jim Raeder é um indivíduo de sanidade perfeita, muito bem equilibrado e plenamente responsável, em todos os sentidos. E voltando-se para Raeder:
- Deseja ainda participar da prova, Jim?
- Sim. Desejo.
- Muito bem! - exclamara Terry. - Jim Raeder, apresento-lhes os seus prováveis assassinos!
E surgira então em cena o bando dos Thompson, sob as vaias da plateia.
- Reparem bem, senhoras e senhores! - dissera Mike Terry com um desprezo ostensivo. - Observem estes homens! Estas criaturas não dispõe de outro código que não o código deformado dos criminosos, não conhecem outra honra que não a honra dos covardes que recebem dinheiro para matar. São homens condenados, rejeitados pela sociedade que não compactua com as suas atividades, destinados a uma morte prematura e vergonhosa.
A plateia aclamara entusiasticamente.
- Qual é a sua impressão, Claude Thompson? - perguntara Terry.
Claude, porta-voz dos Thompsons, aproximara-se do microfone. Era um indivíduo magro, bem barbeado e discretamente vestido.
- Em minha opinião - disse ele, com voz rouca - em minha opinião, nós não somos piores do que ninguém. Somos, por exemplo, como os soldados na guerra. Eles matam, também. E a desonestidade campeia no governo dos sindicatos. Cada qual é corrupto à sua maneira.
Era esse o precário código dos Thompsons. Mas Mike Terry destruíra as racionalizações do assassino com uma rapidez e uma precisão de estarrecer. Suas perguntas penetraram como um bisturi no esterco que era a alma daquele homem.
Ao fim da entrevista, Claude Thompson transpirava, enxugava o rosto com um lenço já ensopado e lançava olhares furtivos aos seus homens.
Mike Terry pousara a mão no ombro de Raeder.
- Este é o homem que concordou em tornar-se sua vítima - se vocês conseguirem apanhá-lo.
- Nós o apanharemos - dissera Thompson, com uma confiança que renascia.
- Ainda é cedo para afirmar - dissera Terry. Jim Raeder já enfrentou touros selvagens - agora enfrentará chacais. Ele é um homem comum. Ele é o povo que visa a eliminação final de você e dos que agem como você.
- Nós o apanharemos - garantira Thompson.
- E ainda existe um outro fato - acrescentara Terry, suavemente. Jim Raeder não está sozinho. O povo da América está com ele. De todos os cantos de nosso país surgirão Bons Samaritanos dispostos a ampará-lo. Embora desarmado e indefeso, ele terá a seu favor a solidariedade do povo, de quem é representante. Portanto, não esteja tranquilo Claude Thompson. O homem comum estará ao lado de Jim Raeder!
Raeder recordava aquilo, estendido e imóvel sob a proteção da vegetação. Sim, o povo o auxiliara. Mas auxiliara também os assassinos.
Um arrepio percorreu seu corpo. Havia escolhido, recordou. Era o único responsável. O teste psicológico estabelecera isso.
Contudo, qual a responsabilidade dos psicólogos que lhe haviam feito os testes? E qual a responsabilidade de Mike Terry, oferecendo tanto dinheiro a um pobre coitado? A sociedade armara a laçada e colocara-a em seu pescoço. Agora, ele enforcava-se com ela e o fato recebia o nome de livre arbítrio.
De quem era a culpa?
- Ah-ha! - gritou alguém.
Raeder olhou para cima e viu um homem importante de pé a seu lado. Usava um casaco de tweed de um padrão espalhafatoso. Um binóculo pendia-lhe do pescoço e tinha na mão uma bengala.
- Por favor, moço - sussurrou Raeder - não me denuncie!
-Hei! - gritou o sujeito, apontando para Raeder com a bengala. - Ele está aqui!
Um alienado, imaginou Raeder. Esse imbecil deve estar achando que isto é uma brincadeira de pegador.
- Está aqui mesmo! - gritou novamente o homem.
Raeder pôs-se de pé praguejando e desatou a correr. Ao safar-se do barranco, enxergou um prédio branco à distância. Dirigiu-se para ele. Ouvia ainda atrás de ai a voz do homem.
- Por ali, lá adiante. Que diabo, pessoal, será que ainda não conseguiram vê-lo?
Os pistoleiros estavam atirando novamente. Raeder correu tropeçando no terreno irregular. Passou na corrida por uma árvore, onde brincavam três meninos.
- Olha o sujeito! - gritaram os meninos. - Ele está aqui.
Raeder continuou a correr, arquejando. Ao chegar à entrada do prédio, verificou que era uma igreja.
Quando a porta, uma bala apanhou-o por trás da rótula direita.
Ele caiu, mas rastejou para dentro da igreja.
O pequeno televisor dentro de seu bolso irradiava a voz de Terry:
- Que final, senhoras e senhores! Que final! Raeder foi baleado! Está com uma bala na perna, meus amigos, rastejando agora, mas ainda não desistiu. Fabuloso, esse Jim Raeder!
Raeder arrastara-se pela nave até junto do altar. Pôde ouvir um menino dizer, em tom prestativo:
- Ele entrou aí, Sr. Thompson. Depressa, que talvez ainda o pegue!
"Mas as Igrejas, são consideradas santuários", refletiu Raeder.
Nisso, a porta foi escancarada e Raeder percebeu que o costume deixara de ser observado. Reuniu as energias que lhe reatavam e rastejou pelo altar, ganhando a porta dos fundos da igreja.
Saíra num velho cemitério. Arrastou-se por entre túmulos e cruzes, por sobre lápides de mármores e granito, contornou campas e marcos toscos de madeira. Uma bala atingiu um jazigo, próximo à sua cabeça, atirando-lhe lascas de pedra. Raeder arrastou-se para a borda de uma cova aberta.
Eles o haviam abrigado, pensou ele. Toda uma infinidade de homens comuns. Não haviam dito que ele era o seu representante? Não se haviam comprometido em proteger aquele que era um elemento seu? - Mas não, eles o odiavam. Por que não percebera logo? O verdadeiro herói era o pistoleiro frio, o assassino de olhar vazio. Thompson, Capone, Billy-the-Kid, Young Lochinvar, El Cid, Chuchulain, o homem sem esperanças ou medos humanos. Eles o cultuavam, sim, àquele implacável pistoleiro desumanizado, e ansiavam por sentir seu tacão sobre os seus rostos.
De costas, no fundo da sepultura, ficou a olhar o céu azul. Uma silhueta escura, entretanto, surgiu por sobre o túmulo, bloqueando sua visão do céu. Houve um ruído metálico. A silhueta fez pontaria, pachorrentamente.
Raeder abandonou definitivamente o que lhe reatava de esperança.
- Pare, Thompson! - ordenou a voz amplificada de Mike Terry.
O revólver vacilou.
- São cinco horas e um segundo! Tempo esgotado! Raeder ganhou.
Houve um pandemônio de aclamações da plateia do estúdio.
O bando dos Thompson, reunido em torno da cova, tinha um ar abatido.
- Ele venceu, meus amigos, é inacreditável! - exclamou Mike Terry. - Atenção, acompanhem esta cena. A polícia chegou e agora afasta os Thompsons de sua vítima - a vítima que não conseguiram matar. Não conseguiram… graças a vocês, Bons Samaritanos da América. Vejam, senhoras e senhores - mãos carinhosas erguem agora Jim Raeder da sepultura em que se acomodara, à espera do fim. E aqui vemos a Boa Samaritana Janice Morrow. Será que estamos diante de um romance que se inicia? Jim parece ter desmaiado, meus amigos. Está recebendo neste momento uma injeção estimulante. Ele acaba de ganhar duzentos mil dólares! Agora, passaremos a palavra a Jim Raeder!
O silêncio durou apenas um instante.
- Houve um imprevisto, senhores telespectadores - retomou Mike Terry. Ao que parece, não será possível no momento obter as impressões de Jim Raeder, que está sendo examinado pelos médicos. Dentro de mais alguns instantes…
Novamente, o silêncio. Mike Terry enxugou a testa e sorriu.
- É a tensão, amigos, uma tensão espantosa. Os médicos acham que… Bem, meus amigos, Raeder sofreu um trauma temporário… Mas isso é coisa passageira! A JBC tem contratados os melhores analistas e psiquiatras do país. Faremos por este admirável rapaz tudo aquilo que for possível, sem que ele precise dispender de um níquel.
Mike Terry olhou para o relógio do estúdio.
- Bem, chegamos ao fim do nosso espetáculo, meus amigos. Aguardem o nosso próximo programa, sempre "O Prêmio do Perigo". E não se preocupem - eu posso assegurar que muito brevemente teremos Jim Raeder de novo conosco.
Mike Terry sorriu e piscou o olho
para a plateia. - Ele ficará bom, eu estou certo.
Afinal, nós estamos torcendo por ele…
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