IMORTALIDADE
Tom Rainbow
Tradução de Ronaldo Sérgio de Biasi
“Somos robôs orgânicos sofisticados, controlados por uma molécula de ADN que tem 4 bilhões de anos de idade; todas as nossas ações obedecem ao seu imperativo prebiótico de fazer mais cópias de si mesma.”
Uma das razões pelas quais gosto de ler ficção científica é que ela me dá uma ideia de como o mundo vai ser depois que eu morrer. No momento em que escrevo estas linhas, estou para fazer trinta anos, a idade em que, de acordo com a maioria, ocorre a transição do Crescimento, Vitalidade e Vigor para a Decadência, Senilidade e Morte. O Capitão James T. Kirk tinha 34 anos quando comandou a nave estelar Enterprise em sua primeira viagem de cinco anos. Trinta e quatro?! Bolas, ainda não cheguei nem a recruta! Na verdade, ainda não consegui passar no Nível 2 quando jogo Jornada nas Estrelas no fliperama! E a injustiça maior é que provavelmente nunca vou conseguir passar. Meus reflexos estão ficando mais lentos, meus mecanismos de reparo estão sendo desligados e a Morte olha por cima do meu ombro quando estou diante do vídeo. Na verdade, é o jogo dela que estou jogando, e como em Jornada nas Estrelas ou qualquer outro videojogo, é impossível ganhar. Mais cedo ou mais tarde, os klingons vão pegar você. A única coisa que você não sabe de antemão é quantos pontos vai fazer.
Até o momento, minha contagem está baixa. Não sou Comandante da Frota Estelar. Não existe nenhum edifício na Quinta Avenida chamado Torre Rainbow. Não consegui nem mesmo o cargo de professor titular. Entretanto, eu me contentaria de bom grado com a contagem atual, embora medíocre, se pudesse prolongar o jogo, de preferência para sempre. Bom mesmo seria tornar-me imortal, parar de envelhecer aos 29 anos, ou mesmo aos 34. Sendo um leitor de ficção científica com uma certa base em bioquímica, talvez a solução mais simples fosse criar um soro da imortalidade, alguma coisa como o antídoto para a velhice de James Blish ou as pílulas de rejuvenescimento de Larry Niven. Para fabricar esse soro, provavelmente seria necessário usar os testículos de alguns daqueles alunos de graduação que vivem me pesteando: “Ei, doutor! Está ficando barrigudo! Ah, ah! Devia fazer um pouco de ginástica! Ah, ah, ah!” Puxa, quanto mais penso na ideia, mais atraente ela me parece. Será que poderíamos realmente criar um preparado capaz de reverter o processo de envelhecimento? Se isso não for possível, será que poderíamos criar qualquer produto comercial a partir dos testículos de alunos de graduação? Enfeites para capôs de automóveis, talvez, ou algum tipo de molho...
Causas Celulares do Envelhecimento
Uma forma de criar um Soro de Imortalidade seria estudar as causas celulares do envelhecimento e descobrir um agente bioquímico capaz de deter ou reverter o processo. Na verdade, só envelhecemos porque nossas células envelhecem. Nossos corpos são compostos de aproximadamente um trilhão de células, cada uma com 5 a 100 mícrons de diâmetro. Essas células descendem de organismos unicelulares independentes que, há cerca de um bilhão de anos, se juntaram para formar um organismo multicelular. Pode se considerar como o tata...tataravô de um bando de paramécios extremamente grudentos. Como acontece em qualquer grupo, como o dos alunos de graduação, começam a ocorrer especializações entre os paramécios: alguns se tornam os músculos do organismo, outros desempenham as funções de integração, tornando-se nervos, e outros se encarregam da reprodução.
Em algum ponto da transição dos paramécios para os alunos de graduação, o tempo de vida dos organismos se tornou finito. Os paramécios são imortais. Coloque um deles em um recipiente com muita comida e nenhum predador e ele se dividirá para sempre, enchendo o recipiente com sua prole. O trilhão de paramécios modificados que formam o corpo humano só se dividem um certo número de vezes. O número de divisões varia de acordo com o tipo de célula. As células nervosas, ou neurônios, não se dividem nenhuma vez, enquanto que as células que revestem o intestino são totalmente substituídas a cada vinte dias. Uma pessoa pode ter milhares de diferentes populações de células intestinais durante sua vida.
Por que as células se dividem? No caso das células intestinais, é para substituir as células que morrem. No caso dos paramécios e das células dos testículos dos alunos de graduação, é para reproduzir o organismo. Mas por que os organismos se reproduzem? Porque há aproximadamente quatro bilhões de anos, quando nossos antepassados eram moléculas de ácido nucléico, uma molécula de sorte aprendeu a copiar a si mesma. Por definição, uma vez que surgiu o primeiro sistema capaz de reproduzir a si próprio, o número de cópias desse sistema aumentou geometricamente até dominar o cenário prebiótico. Quando surgia uma mutação capaz de proteger o sistema ou acelerar sua velocidade de duplicação, essa mutação era conservada. Aos poucos, isso levou a novidades úteis, como o emprego de uma membrana celular como uma espécie de invólucro para o sistema e o uso de proteínas especiais, chamadas enzimas, para acelerar certas reações químicas, permitindo aos ácidos nucléicos controlar o ambiente com maior eficiência. Do ponto de vista evolutivo, o sistema adquiriu superpoderes, por assim dizer; começou a explorar as estranhas avenidas da auto reprodução, tornando-se multicelular, tornando-se vertebrado e finalmente tornando-se humano.
Somos, portanto, robôs orgânicos sofisticados, controlados por uma molécula de ADN que tem quatro bilhões de anos de idade; todas as nossas ações obedecem ao seu imperativo prebiótico de fazer mais cópias de si mesmas. Uma vez que você entenda esse fato, não precisa mais ir à igreja. Qual, porém, o interesse do seu ADN em que você envelheça e morra? Na verdade, por estranho que pareça, o seu ADN é imortal. Ele vem sendo copiado e recopiado há quatro bilhões de anos. Quando você tem filhos, você torna a copiá-lo e o introduz em mais um robô orgânico. O ADN só está interessado na sua sobrevivência até que você se torne suficientemente maduro para procriar. Depois disso, ele abandona você. Você envelhece e morre, ou porque você não é mais importante para o futuro do ADN, de modo que não importa que você perca a capacidade de consertar o seu corpo, ou porque o ADN o considera como uma ameaça a sua imortalidade, e toma os passos bioquímicos necessários para que você morra aos poucos. Seja como for, o preço que pagamos pelo Sexo é a Morte. Puxa, não seria tão triste se o Sexo fosse melhor!
Mas afinal nós morremos porque o ADN se esquece de nós ou porque somos deliberadamente assassinados? Na minha opinião, somos vítimas de um crime. Em primeiro lugar, a morte não é uma consequência inevitável do metabolismo celular. Lembre-se do paramécio, que pode se dividir para sempre. Se não dispusesse de mecanismos sofisticados de auto reparo, uma máquina complicada como um paramécio enguiçaria em poucos minutos. Os mesmos mecanismos de auto reparo que permitem que o paramécio sobreviva durante alguns minutos permitem que ele sobreviva para sempre. Assim, seria um absurdo pensar que morremos porque é mais difícil manter nossas células durante cem anos do que mantê-las durante uma semana.
Em segundo lugar, o tempo de vida dos organismos multicelulares varia enormemente de espécie para espécie. Os camundongos vivem dois anos, os cachorros sete, os humanos setenta, as sequoias alguns milhares de anos.
Não há razão para pensar que as células de um camundongo ou cachorro sejam mais ou menos complicadas do que as nossas células; na verdade, elas deveriam envelhecer mais ou menos com a mesma rapidez. O fato de que não o fazem sugere que são deliberadamente assassinadas depois de um certo período de tempo. Além disso, dado que é possível fazer nossas células viverem para sempre, como os paramécios, seria natural que nos reproduzíssemos eternamente, gerando um número infinito de cópias de ADN. O fato de que isso não ocorre na prática sugere mais uma vez que estamos sendo deliberadamente eliminados. Uma boa razão para a nossa morte pode ser evitar que entremos em competição com nossos descendentes, que podem ser dotados de importantes melhoramentos genéticos e portanto terão uma capacidade ainda melhor do que a nossa de fazer cópia do seu ADN. Conclusão: estamos sendo assassinados por um pedaço de ADN, uma molécula fria, desumana, que nos seus quatro bilhões de existência se transformou na maior assassina da história, que já eliminou trilhões dos seus descendentes e que não descansar enquanto não pegar também você e eu! Polícia!
Um Soro de Imortalidade
Se o motivo é evitar que os seres vivos, por assim dizer, comam sua prole, então qual é a arma? Existem alguns indícios de que morremos porque nossos mecanismos de auto reparo são deliberadamente desligados. Como já foi dito, sem um sistema de reparo e renovação, máquinas tão complicadas como nossas células deixariam rapidamente de funcionar. Nosso sistema mais importante de auto reparo é aquele que preserva as informações contidas no ADN. O ADN que existe em cada célula do nosso corpo contém aproximadamente dez bilhões de bits de informação, que especificam em detalhes a estrutura e o funcionamento da célula. Quando esta informação é distorcida, o funcionamento da célula geralmente é prejudicado. Mudanças aleatórias no ADN das células reprodutoras são chamadas de mutações e constituem a força motriz da evolução. Na maioria dos casos, essas mutações diminuem o sucesso reprodutivo do organismo, mas, uma vez ou outra, uma mutação pode ser benéfica. As mutações somáticas, isto é, as que ocorrem nas células de um indivíduo que não estão envolvidas na reprodução, também raramente são benéficas. (Para maiores detalhes a respeito das mutações somáticas, veja “Superpoderes”, no n0 11 da IAM). Existe um complexo sistema de enzimas para evitar que o ADN acumule erros. Pares anormais de bases são extirpados e segmentos danificados são rapidamente substituídos, o que mantém a média de erros abaixo de um para cada bilhão de bits de informação. Que aconteceria, porém, se nossos mecanismos de reparo passassem a funcionar com uma eficiência um pouco menor, permitindo, digamos, dez ou vinte erros para cada bilhão de bits? Inicialmente, os efeitos seriam pouco visíveis, mas os erros tenderiam a se acumular, com o ADN ligeiramente defeituoso gerando proteínas não funcionais. Como algumas dessas proteínas seriam as enzimas responsáveis pela síntese e reparo do próprio ADN, a probabilidade de erro se tornaria ainda maior. Isso resultaria em proteínas ainda mais defeituosas, que introduziriam novos erros no ADN, gerando outras proteínas não-funcionais, que causariam mais erros no ADN, até que finalmente haveria uma catástrofe de erros. Este foi o termo criado pelo bioquímico Leslie Orgel para descrever o envelhecimento causado pelo aumento exponencial do número de erros genéticos. De acordo com esta teoria, envelhecemos porque aquele pedaço de ADN de quatro bilhões de anos substitui o nosso revisor por outro menos competente!
Quais são as provas que apoiam a hipótese da catástrofe de erros? Em primeiro lugar, à medida que as células envelhecem, começam a fabricar proteínas defeituosas. O número dessas proteínas defeituosas aumenta exponencialmente com a idade das células, o que está de acordo com as previsões da teoria de catástrofe de erros. Uma dessas proteínas defeituosas é a ADN polimerase, a enzima que produz ADN a partir dos nucleotídeos. A perda de precisão da ADN polimerase aumenta exponencialmente com a idade das células, o que mais uma vez está de acordo com a teoria da catástrofe de erros. Outra previsão da teoria da catástrofe de erros é de que as células envelhecem prematuramente quando são submetidas a fatores capazes de produzir erros na transcrição das informações genéticas. Isso também é observado na prática, pois certos antibióticos e análogos dos nucleotídeos, que diminuem a precisão da síntese de proteínas, fazem com que as células envelheçam prematuramente. Esses compostos funcionam portanto como soros de antiimortalidade e devem ser colocados na Coca-Cola dos alunos de graduação que têm o desplante de dizer que você está ficando barrigudo!
Existem outras provas da teoria da catástrofe de erros? Bem, são conhecidas algumas doenças humanas que produzem envelhecimento prematuro, fazendo com que crianças de cinco anos ou (irc!) homens de trinta anos morram de velhice em menos de um ano. A primeira é chamada de progéria; um exemplo da segunda é a Síndrome de Werner. As células de crianças ou adultos que sofrem de envelhecimento prematuro exibem um sistema defeituoso de reparo de ADN e proteínas defeituosas. Assim, vários tipos de envelhecimento parecem estar associados ao aumento no número de erros de transcrição das informações genéticas. Já que o envelhecimento pode ser acelerado por drogas que introduzem erros na síntese de proteínas e que o aparecimento de erros durante o envelhecimento aumenta exponencialmente com o tempo, existem boas razões para pensar que a catástrofe de erros é a causa do envelhecimento normal dos seres humanos.
A prova concludente, porém, seria demonstrar que a supressão dos erros na transcrição das informações genéticas leva à eliminação do envelhecimento humano. Se conseguíssemos esse feito, não só teríamos ajudado a provar uma importante teoria científica, mas também teríamos criado um soro de imortalidade. Ou uma injeção de imortalidade, se a substância não resistisse à passagem pelo sistema digestivo.
Quais os conhecimentos necessários para desenvolver uma substância capaz de impedir a catástrofe de erros? Primeiro de tudo, teríamos de saber quais são as causas dessa catástrofe. Estamos supondo que o início da avalanche que leva à catástrofe de erros é um evento deliberado na vida de uma célula, destinado a impedir que um organismo multicelular entre em competição com sua prole. Em um certo ponto, portanto, um sinal molecular específico é fornecido à célula, fazendo com que ela reduza a fidelidade da síntese de ADN e proteínas. Ei, pense você, se conseguirmos impedir que esse sinal seja ativado, viveremos para sempre! Teremos a oportunidade de assistir a todos os nove filmes da saga Guerra nas Estrelas e um dia poderemos vender muitos dos nossos alunos de graduação aos Traficantes de Escravos Interestelares, em troca de sorvetes de sabores exóticos e revistas em quadrinhos holográficas!
Não é tão fácil como parece. Primeiro temos de descobrir qual é esse sinal molecular. Provavelmente, está ligado a uma mudança na síntese de uma certa proteína celular em um determinado estágio da vida da célula. As células contêm muitas proteínas. Uma célula típica de um mamífero pode ter de duzentas mil a quinhentas mil proteínas diferentes. Conhecemos a função de uns 10% dessas proteínas, nenhuma das quais até o momento parece estar ligada ao início do processo de envelhecimento. Pior ainda: não existe nenhuma forma conhecida de associar uma dada proteína ao sinal responsável pela catástrofe de erros. O ideal seria examinarmos todas as proteínas de uma célula para vermos qual delas sofre uma alteração no momento em que começamos a envelhecer. Qualquer comportamento suspeito de uma proteína nessa ocasião poderia significar que ela é a sabotadora que dispara a catástrofe de erros. Entretanto, com a tecnologia atual, não podemos examinar simultaneamente mais do que duas mil proteínas, o que corresponde a menos de 10% do total. Pelo que sei, até hoje não foi feito um estudo das mudanças sofridas pelas proteínas durante o envelhecimento das células, de modo que é possível que alguém tenha sorte e consiga encontrar a nossa proteína terrorista entre os 10% que somos capazes de detectar, O que precisamos realmente é de técnicas melhores para estudar as proteínas celulares. É difícil dizer quando essas técnicas serão desenvolvidas, Daqui a dez ou vinte anos, talvez. Talvez nunca, se o governo resolver diminuir as verbas destinadas à pesquisa básica. Entretanto, sendo um otimista, estou certo de que um dia conseguiremos identificar as mudanças moleculares que promovem o envelhecimento, criar compostos químicos capazes de impedir essas mudanças e portanto desenvolver um verdadeiro soro da imortalidade.
A essa altura, porém, quase todos nós estaremos muito velhos, O processo inteiro pode levar uns cinquenta anos. Para fazer uma experiência direito, tenho de fazê-la devagar. Quando tento andar depressa, acabo quebrando coisas. Se você quebra muitos vidros de um composto químico exótico que custa 1.000 dólares o grama, em pouco tempo estará sem dinheiro para continuar a pesquisa. Haveria alguma forma de reverter o processo de envelhecimento, caso o soro da imortalidade apareça no mercado quando alguns de nós estiverem para fazer cem anos?
Pode ser. Parte da força da teoria da catástrofe de erros está justamente no fato de que depois que ela começa é muito difícil de deter, e mais difícil ainda de inverter. Você teria de substituir o ADN defeituoso que especifica as enzimas responsáveis pelo reparo do ADN; caso contrário, a catástrofe de erros continuaria. Dependendo da sua idade, e portanto do número de erros que se acumularam no seu ADN, um mecanismo de reparo recauchutado talvez fosse suficiente para consertar a maior parte dos erros que existem nos seus genes. Você poderia, por exemplo, engolir um vírus artificial que introduzisse nas suas células genes frescos das enzimas de reparo do ADN. No momento, já somos capazes de introduzir alguns genes nas células. No momento, nosso conhecimento a respeito das células de reparo do ADN ainda é limitado, mas um dia, se as verbas de pesquisa não forem cortadas, saberemos tudo a respeito dessas danadinhas. Como já disse, o processo de investigação pode levar uns cinquenta anos. Assim, na mesma época em que os laboratórios comerciais lançarem o soro da imortalidade, nós, coroas, também teremos à nossa disposição o soro da juventude.
Medidas de Emergência
Imagine que uma coisa horrível aconteça e que as minhas estimativas estejam erradas. Suponha que os cientistas levem 200 anos para desenvolver o soro da imortalidade. Nesse caso, uma saída para nós é começarmos desde já a adquirir um jazigo perpétuo, pago em suaves prestações. Outra é recorrermos a meios de extensão da vida, até chegar o dia em que poderemos pagar a um laboratório o equivalente ao PNB de muitos países do Terceiro Mundo para conseguirmos a Eterna Juventude. Um desses métodos é a animação suspensa, descrita em zilhões de histórias de ficção científica. Geralmente, o que se faz é resfriar o corpo a temperaturas criogênicas, interrompendo o processo de envelhecimento da mesma forma prosaica que o congelamento impede que um bife apodreça.
O principal problema da animação suspensa é a água. A água aumenta de volume quando congela; é por isso que o gelo flutua. Assim, quando a água no interior das células vira gelo, o gelo rompe as membranas celulares, matando as células. Existem meios de minorar o problema, como, por exemplo, o uso de agentes anti-congelantes, que substituem a água existente nas células por um solvente orgânico que não aumenta de volume quando congela. Mesmo assim, pode-se perder de 80 a 90% das células no processo de congelamento. Talvez os 10% restantes possam regenerar o organismo, embora para órgãos como o cérebro, cujas células não se regeneram, o conserto dos danos causados pelo congelamento seja equivalente na prática a construir um cérebro novo. Talvez você seja forçado a recorrer a uma medida drástica, como transferir a sua consciência do seu corpo inútil, danificado pelo congelamento, para um clone do seu corpo antigo, construído a partir do ADN das células que foram congeladas. Naturalmente, se você fizer isso com o velho ADN, cheio de erros, começará imediatamente a envelhecer de novo, mas pode ser que a essa altura o soro da juventude já tenha sido inventado.
O processo de descongelamento provavelmente será bastante dispendioso, de modo que é melhor que você tenha escrito dez ou mais bestsellers de ficção científica, ou talvez apenas um daqueles livros com títulos como Como Fazer Seus Pés Cheirarem Melhor em 30 Dias. Se está disposto mesmo a transformar-se no que Larry Niven chamou de “corpolé”, recomendo que congele apenas o cérebro e um pequeno número de células epiteliais do intestino, que serão usadas para fazer um clone do seu corpo. É muito mais fácil congelar com segurança pequenas quantidades de tecido do que um corpo inteiro. O sêmen humano pode ser armazenado indefinidamente em nitrogênio líquido com uma perda apenas moderada de viabilidade. Se possível, armazene apenas os “circuitos de consciência” do cérebro, ou seja, a parte necessária para reconstruir a sua personalidade e a sua memória. Talvez seja conveniente colocar na cápsula criogênica uma fotografia sua, para facilitar o processo de reconstrução do seu organismo. Pretendo colocar na minha um retrato do Tom Cruise.
Outra técnica de extensão da vida é a dos transplantes de órgãos. No Universo do Espaço Conhecido, criado por Larry Niven, a menor infração podia fazer com que um indivíduo fosse mandado para os bancos de órgãos, onde seus órgãos eram dissecados e distribuídos para um grupo de velhos ricos, que aguardavam avidamente essa oportunidade de substituir as “peças” gastas. O conceito dos bancos de órgãos baseava-se na hipótese de que um dia seria inventada uma droga capaz de evitar o fenômeno da rejeição. Acontece que, pouco depois que Larry Niven lançou a idéia, foi descoberta a primeira dessas drogas, a ciclosporina, que inibe, de forma seletiva, os componentes do sistema imunológico responsáveis pela rejeição de tecidos. O uso da ciclosporina aumentou de forma considerável a probabilidade de sobrevivência dos pacientes de transplantes de coração. Dado o sucesso conseguido com a ciclosporina e outras drogas ainda mais eficientes que foram descobertas nos últimos anos, é de se prever que o problema da rejeição seja eliminado totalmente no futuro mais ou menos próximo. Nesse caso, teremos à nossa disposição um excelente recurso para nos mantermos vivos até que a verdadeira imortalidade esteja disponível.
Será que a eliminação do problema da rejeição levará a uma sociedade do tipo descrito por Niven, no qual a pena de morte será aplicada a “crimes” como atravessar a rua fora da faixa ou deixar de pagar os impostos em dia, apenas para que haja mais órgãos disponíveis para transplante? A verdade é que a procura de órgãos sempre será maior que a oferta. Calcula-se que existem apenas vinte mil doadores em potencial por ano nos Estados Unidos, o que é uma gota d’água no oceano quando se pensa que quase todas as mortes por causas naturais poderiam ser adiadas por algum tempo através de transplantes de órgãos. O número de condenados à morte à espera de execução é ainda menor. O problema de aumentar a oferta de órgãos aumentando o número de crimes sujeitos à pena de morte é que isso vai contra a Constituição, que proíbe a aplicação de punições cruéis e incomuns. Para mudar isso seria necessária uma emenda constitucional. Talvez fosse mesmo necessário instalar uma nova Assembleia Constituinte. Não é impossível que uma população de velhos influentes esteja disposta a chegar a esse extremo, mas até que isso aconteça, é provável que os órgãos artificiais estejam suficientemente desenvolvidos para substituir os órgãos naturais, o que tornaria desnecessário reescrever a Constituição.
Outra ideia de Larry Niven é do tráfico de órgãos, que implica matar gente inocente para vender o material assim obtido no mercado negro. Por estranho que pareça, acho mais provável que as coisas evoluam nesse sentido do que no de condenar pessoas à morte por estacionar em local proibido, já que no primeiro caso a iniciativa privada se encarregaria de tudo. Digamos que você esteja precisando de um transplante de fígado. Os fígados estão em falta no banco de órgãos, e em conseqüência você sabe que vai morrer. Isso é extremamente indesejável, de modo que você paga uma grande quantia em dinheiro ao representante local do Crime Organizado para que um rapaz qualquer de dezenove anos seja assaltado e assassinado nas proximidades do banco de órgãos. Assim, o banco de órgãos consegue um fígado, e você não morre de insuficiência hepática crônica. Quem vai saber que foi você? Afinal de contas, todo dia morre gente em assaltos. E o que o banco de órgãos vai fazer? Recusar o material só porque o doador foi assassinado? Claro que não. Entretanto, a outra parte da idéia de Niven, de que o material extraído da vítima acabaria no mercado negro, não me parece tão exeqüível. Para come-çar, seria preciso que cirurgiões altamente habilitados estivessem dispostos a associar-se aos criminosos, arriscando-se a acabar eles próprios nos bancos de órgãos. Por maiores que fossem as somas envolvidas, acho que seria difícil convencer os cirurgiões de transplantes a fazerem qualquer coisa ilegal, por eles já ganharem salários altíssimos, maiores até mesmo que os dos escritores mais famosos de ficção científica. Talvez um estudante de medicina aceitasse a oferta, mas nesse caso você correria o risco de acabar com os pulmões ao contrário.
Conseqüências Sociais da Imortalidade
É evidente que se nós todos nos tornarmos imortais, a taxa de natalidade terá de diminuir consideravelmente. O quanto depende do número de pessoas que queremos na Terra. Digamos que a população atual da Terra seja cinco bilhões, a taxa de natalidade tenha diminuído para apenas o suficiente para manter a população constante, e de repente amostras grátis do soro da imortalidade comecem a ser enviadas pelo correio para todos nós. Em aproximadamente vinte anos, a população da Terra terá dobrado. Vinte anos depois, seus dois filhos já terão seus dois filhos e a população já terá aumentado em mais cinco bilhões. Depois de um século, a Terra estará com trinta bilhões de habitantes.
Só teríamos uma população de trinta bilhões se não houvesse mortes. Podemos supor que, mesmo com o soro da imortalidade, algumas pessoas morrerão assassinadas ou por acidente. Pode ser até que algumas sejam alérgicas ao soro da imortalidade e portanto estejam condenadas a morrer de velhice. Suponhamos que a probabilidade de uma pessoa morrer assassinada ou por acidente seja de 0,1%. Em outras palavras, em cada mil pessoas, uma estará fadada a morrer. Para cada bilhão de pessoas, estaremos perdendo um milhão. Assim, no final de cem anos, restarão 29.750.000.000 de pessoas em vez de 30.000.000.000. Grande diferença! Na verdade, a única forma de impedir que a população se torne excessiva é diminuir a taxa de natalidade. Digamos que seja permitido apenas um filho por casal. Nesse caso, a população aumentará em 2,5 bilhões de habitantes nos primeiros vinte anos, de 1,25 bilhão de habitantes nos vinte anos seguintes e de 625 milhões nos vinte anos seguintes, o que nos dará uma população total de aproximadamente dez bilhões de habitantes no início do século XXII. Curiosamente, se admitirmos uma taxa de mortalidade de 0,1%, a população se estabilizará em aproximadamente dez bilhões de habitantes depois de 120 a 140 anos.
Assim, dada uma taxa de mortalidade de 0,1% e uma taxa de natalidade de um filho por casal, a população da Terra será multiplicada por 2 depois da introdução do soro da imortalidade e se estabilizará nesse nível. Isso me parece um aumento tolerável, especialmente se todas essas pessoas novas forem mandadas para Dakota do Norte ou para algum deserto da Austrália. O problema principal é que a Terra se tornará um planeta de filhos únicos mimados e egocêntricos, sempre querendo ser os primeiros a usar a Máquina do Tempo, recusando-se a emprestar seus brinquedos etc. Imagine o que poderia acontecer se a humanidade fosse finalmente convidada a juntar-se à Federação Galáctica. Como a sede da Federação fica em Rigel, os rigelianos são encarregados de preparar um suntuoso banquete em nossa homenagem, e servem ao embaixador da Terra ao primeiro prato, um ensopado de trirspx, que é uma espécie de larva que os rigelianos adoram. BUÁÁ!, faz o nosso embaixador filho único. ISSO ESTÁ HORRÍVEL!! EU QUERO UM CHEESEBURGER!! Mortalmente ofendidos, os rigelianos baixam um decreto declarando que não somos uma raça inteligente e servimos apenas como alimento. Somos de imediato abatidos e comidos. [Nota: a editora da IAM norte-americana na época em que este artigo foi publicado, que é filha única, fez questão de tornar público que não concorda com as ideias expressas pelo autor no presente parágrafo.] Talvez uma infância passada em um remoto deserto da Austrália ajude a aperfeiçoar o caráter das pessoas. Talvez a mesma companhia que inventou o soro da imortalidade seja capaz de aperfeiçoar também o soro da cordialidade.
Outro problema de diminuir a taxa de natalidade é que com isso podemos eliminar a maior parte das inovações em nossa sociedade. Boa parte das ideias novas são introduzidas por pessoas de menos de trinta anos. Newton tinha vinte e poucos anos quando desenvolveu a mecânica clássica. Einstein tinha vinte e poucos anos quando criou a mecânica relativística, mas, de acordo com sua autobiografia, as ideias básicas ocorreram-lhe quando tinha apenas dezesseis anos. Darwin publicou a Origem das Espécies aos quarenta anos, mas, de acordo com sua autobiografia, começou a pensar na teoria da Seleção Natural quando tinha vinte e poucos anos. A lista é interminável. Pode ser que a criatividade diminua com a idade porque nossos neurônios começam a sentir os efeitos da catástrofe de erros e se tornam decrépitos. Nesse caso, o soro da imortalidade nos manteria borbulhantes de ideias. Entretanto, é possível que novas ideias estejam intimamente ligadas ao processo de ver ou conhecer as coisas pela primeira vez. Se for assim, a imortalidade e as inevitáveis restrições à taxa de natalidade acarretadas por ela constituirão um sério problema, porque o número de pessoas de vinte e poucos anos diminuirá exponencialmente durante os próximos cem anos. Mas vamos procurar ver as coisas pelo ângulo positivo! Poderemos ficar cercados por um bando de filhos únicos mimados, egocêntricos e nada criativos, mas não haverá mais alunos de graduação!! Zero! Néris! O Conjunto Vazio! Os poucos que forem necessários para compensar a taxa de mortalidade de 0,1%, nós podemos colocar no Zoológico da Terra, ao lado dos tamanduás!. Já reparou na semelhança que existe entre um aluno de graduação e um tamanduá? A única diferença é que os tamanduás têm melhores modos à mesa e não cheiram tão mal. Além disso, muito poucos deles estudam medicina. Como disse George Bernard Shaw, a juventude é desperdiçada nos jovens. Como eu disse uma vez, alimente um aluno de graduação com formigas, mostre a ele o retrato de um tamanduá pelado, e terá um amigo para o resto da vida. Que para aqueles de nós que têm mais de trinta está passando mais rápido que a luz.
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© Publicado na Isaac Asimov Magazine, Brasil, nº19 Record, 1992.
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