MONSTROS NA BORDA DO UNIVERSO
Roberto Schima
O estagiário de Astronomia caiu para trás, resvalando no assento da cadeira giratória e esborrachando-se no piso do observatório. Teria doído, não estivesse ele na superfície lunar, onde a gravidade era de menos de dois décimos daquela na Terra.
- Eu vi... - balbuciou. - Eu vi...
Nada mais se movia, exceto a cadeira a girar e girar.
Era para ser um trote, somente um trote pregado pelos mais velhos, coisa comum em toda parte, até na Lua. Mas nem todos teriam sido trancados na sala do observatório ao lado do telescópio energético.
Sim, o telescópio energético.
Era a última palavra em telescópio espacial e seria colocado a funcionar na semana que vem, deixando seus concorrentes estrangeiros para trás. Seus preparativos haviam tomado o tempo de dezenas de técnicos, de engenheiros e toda sorte de especialistas. O telescópio energético propriamente, a bem da verdade, estava bem longe dali, nos confins do sistema solar após cobrir anos de viagem. O que o estagiário - Hideki era o seu nome - tinha diante de si era o receptor de sinal vindo algures nas entranhas geladas do espaço.
O jovem oriental não pretendera infringir regras. Fora criado dentro das disciplinas de respeito e de obediência que sempre caracterizaram seu povo. Todavia, seu povo estava longe demais dali - excluindo-se a turma no observatório. Encontrava-se na esfera azulada pendurada no céu, cuja visão não era permitida ao rapaz; não por causa das muitas regras, mas devido a perspectiva: a base inteira estava situada no lado oculto da Lua. Deixaram-no trancado ali na sala após as comemorações. Todos festejaram. Todos beberam saquê e vodka um pouco além da conta. Ele não. Detestava saquê, vodka, tequila, pinga, como de resto, qualquer bebida fermentada. Como "punição", passaria o período convencionado para a "noite" trancado no aposento.
Trancado na penumbra, rodeado de aparelhos. A última palavra em tecnologia.
O que mais poderia fazer para passar o tempo?
Havia séculos perdera a paciência de jogar paciência no computador. Não estava com o espírito para ouvir música, assistir a um filme ou um documentário, enviar mensagens para a Terra - sempre com o enjoado crivo atento da censura sobre sua cabeça.
E o receptor do telescópio energético estava ali.
Sentira-se magoado. A raiva fervera seu sangue.
Tivera medo, naturalmente, entretanto, presenciara os procedimentos teóricos tantas vezes que acabara por decorá-los.
E, na escuridão surreal do observatório, através da tela do aparelho, recebendo os sinais do satélite na borda do sistema solar, Hideki vira mais longe do que qualquer ser humano pudesse ter enxergado ao longo de milhões de anos de existência da espécie.
Nos confins do espaço, detectara bolsões invisíveis de matéria. Tão inacreditavelmente compactos e massivos que produziam estranhas aberrações cromáticas em todo trajeto que os separava nos bilhões de anos-luz até o jovem aprendiz.
O que seriam? Por estarem tão distantes no espaço e, proporcionalmente, no tempo, deveriam margear a própria origem do Universo. Pensou na enormidade de tempo, na existência, no infinito, nos inumeráveis corpos no espaço, no que haveria por descobrir.
A mágoa e a raiva diluíram-se rapidamente.
Foi quando deparou-se com galáxias próximas - vistas com uma nitidez nunca anteriormente presenciada. Distinguiu estrelas indivualmente e detalhes nos braços nebulosos. E, diante daquele centro de luz, em seu amadorismo, concluiu:
- Eu vi...
Os mais velhos ririam se soubesse. E eles nunca poderiam saber que fizera uso não autorizado do aparelho. Afinal, o que entendia Hideki de astrofísica?
- Eu vi...
Havia um "monstro" no interior de cada galáxia. E esse monstro devorava tudo ao seu redor. Percebera os jatos de energia. A luz agonizante de miríade de sóis sendo devorados por aquela boca escancarada de um negror impossível. Eventualmente, concluira, nada mais restaria além da imensidade de seu corpo ameaçador e invisível.
"Nas galáxias espirais como a Via-Láctea, as estrelas não giram simplesmente ao redor de seu centro como sempre quiseram fazer crer os astrônomos, como se fossem os planetas de nosso sistema solar ao redor do Sol", pensara. "Não. O trajeto não era uma elipse como no caso dos planetas, mas uma espiral."
- Espiral!
"Obviamente, rapaz!", responderiam todos, diante das centenas de imagens conhecidas de galáxias de todos os tipos, cores e formatos. Porém, então, por que não divulgavam o óbvio?
Espiral... Semelhante a espiral formada pelos furacões, tornados ou pela água a escoar pelo ralo.
Espiral.
Essa extrapolação, por mais simplória que fosse, aliada a teoria de que todas as galáxias - ou a maioria - possuíam um buraco negro colossal em seu interior levara Hideki a conclusão de que tudo em uma galáxia - estrelas, planetas, poeira interestelar, nebulosas, buracos negros - estaria, na verdade, sendo arrastado, sugado, tragado por esse vórtice até o mergulhar medonho para o interior do buraco negro gigantesco - ou "monstro" - que habitava o centro da Via-Láctea.
Não importava quanto tempo levasse, o fim seria inevitável, fossem humanos, fossem quaisquer outras formas de vida existentes nos bilhões de mundos na galáxia.
Qual seria o final dessa história? Depois de tragar tudo o que houvesse ao seu redor daqui a milhões ou bilhões de anos, sobraria tão somente esse monstro imenso, essa garganta inconcebível, faminta e invisível, como uma fera de tocaia atrás da moite, como uma armadilha mimetizada na escuridão do espaço.
- Eu vi... o fim.
O fim, enquanto espécie, seria inevitável, como o era a vida individual de qualquer um.
Não haveria futuro.
E, sem futuro, qual seria o porquê do presente?
Hideki chegara a sorrir consigo e de si ao relembrar um antiquíssimo filme. Woody Alley, sim, Woody Allen, esse era o nome do diretor-ator desse filme, onde a personagem, ainda criança, entrara em depressão ao saber que o Universo estava se expandindo...
Isso levara o aturdido estagiário a uma outra extrapolação: o universo estava se expandindo desde o Big Bang. As galáxias mais antigas estavam a bilhões de anos-luz. Não seria então possível imaginar que, mais além ainda, nas - digamos assim - "bordas" do Universo, não estariam as galáxias primordiais, ou melhor, aquilo que restara dessas galáxias após consumirem tudo a sua volta: os inacreditáveis monstros invisíveis, capazes de devorar e distorcer todo o espaço ao seu redor? E não poderiam ser esses monstros a propalada e procurada "matéria escura" da qual os cientistas especulavam havia gerações?
A cabeça de Hideki rodopiava.
O fim.
A galáxia.
A matéria escura.
Monstros e monstros.
Monstros na borda do Universo.
Na manhã seguinte - de acordo com a convenção vigente no observatório lunar -, o cientista entrou na sala e observou seu aprendiz em um colchonete num canto entre as paredes. Pigarreou.
- Hideki!
O garoto abriu os olhos com dificuldade. Tivera um sono conturbado. Apoiou-se num dos cotovelos.
- Prof. Hiroshi...
- Não me diga nada. Sei que armaram essa travessura com você. Está bem?
Atrás do cientistas, Hideki avistou rostos sorridentes. Seus algozes.
- Tudo bem, professor.
- Então, apresse-se, precisamos realizar mais testes com os aparelhos antes da inauguração.
- O astro-observatório! - disse alguém às costas do cientista.
Ele virou-se, carrancudo.
- Eu prefiro o termo telescópio energético.
- Sim, senhor, Prof. Hiroshi. Desculpe-me.
E o cientista:
- Então, Hideki. Levante-se! Ânimo, rapaz! Vamos iniciar.
Hideki esboçou um sorriso.
"'Iniciar'? Iniciar o quê? Eu vi tudo. Eu sei de tudo. Não é o início. É o fim."
Do lado de fora, a aridez da paisagem lunar e o céu permanentemente escuro.
Hideki praguejou, desejando observar a Terra e voltar a ver as paisagens de seu longínquo país.
***
(c) 2017 Roberto Schima