O Canon dos Prefácios em Ficção científica — Ray Bradbury



Prefácio

A nave da melancolia

Ray Douglas Bradbury nasceu em 1920 em Waukegan, Illinois, nos Estados Unidos. Condensada em poucas palavras, essa informação, contudo, é fundamental para compreender alguns aspectos marcantes da obra desse escritor, mundialmente conhecido e tão ligado às lembranças de sua infância.

Bradbury tem uma obra vastíssima que inclui contos, romances, peças de teatro, rádio, televisão, poesia, fábula, antologias, literatura infantil, obras de não-ficção e roteiros de filmes, entre os quais o de Moby Dick, baseado no romance de Hermann Melville. Dirigido por John Huston, com quem Bradbury teve um relacionamento difícil, o filme foi lançado em 1956 com o sucesso que a premiação do Oscar só viria reforçar.

Por paradoxal que pareça, mesmo em seu romance mais conhecido, Farenhiet 451, de 1953, que ele próprio aponta como sua única obra verdadeiramente de ficção científica, há em sua literatura uma marca indelével de melancólica saudade que subsume a linearidade do tempo e reúne o passado e o futuro em um presente constante e poético de ausências.

Contador de histórias, como ele mesmo se classifica, escrevendo durante mais de sessenta anos um conto por semana, segundo uma metodologia obstinada de trabalho, a poesia, não só como forma, mas também como atitude expressiva, constitui uma marca característica de sua prosa, a ponto de ter formado, logo no início de sua carreira, a reputação de “poeta dos pulps”.

Se o poético de sua obra não o incomodava, antes, ao contrário, era por ele cultuado, o fato de ser tido como um autor de ficção científica sempre o motivou a procurar romper os limites desse enquadramento e a buscar ser visto como um autor de literatura, independentemente dos cenários e das fantasias com que vestiu os ambientes de suas histórias e os personagens de suas narrativas.

Não que não prezasse, e muito, os heróis de sua infância e juventude — Tarzan, Buck Rogers, Flash Gordon, entre outros —, não que não reconhecesse a marca de origem de sua literatura, misturando gêneros — fantástico, mistério, realismo, gótico, ficção científica —, e a ela fosse reconhecido pelo caminho que lhe abriu e lhe permitiu trilhar.

Mas queria, desde o começo, ser um autor universal, sem restrição de gênero, de geografia, de língua, de compartimentação literária.

Desde a publicação de seu segundo e um de seus mais conhecidos livros — Crônicas marcianas, 1950 —, ele insistia, junto à Doubleday, com seu editor, que por sinal se chamava, embora sem nenhuma relação de parentesco, Walter Bradbury, que o selo de classificação como “ficção científica” não mais aparecesse, nem na capa, nem em parte alguma da apresentação de seus livros.

Argumentava, de modo prático, para que o mesmo não ocorresse com O homem ilustrado (1951), seu livro seguinte, que as Crônicas marcianas teriam tido muito mais resenhas críticas e muito mais vendas não fosse o selo. Evocava ainda os casos de Aldous Huxley e George Orwell, que jamais eram referidos, segundo ele, como escritores de ficção científica.

Isso ele conseguirá não só com a eliminação do selo, mas sobretudo com o reconhecimento crescente, de crítica e de público, da qualidade literária de sua obra, também crescente, em um ritmo de produção constante, regular e disciplinado.

Tomando as Crônicas marcianas como referência, pode-se dizer que ali estão várias das características marcantes da obra de Ray Bradbury.

A primeira delas é que ele é um excelente contista, com algumas dificuldades para o romance, embora Fahrenheit 451 (1953) mereça estar situado entre as melhores obras do gênero que tratam do mundo sombrio da censura e do centralismo ideológico controlado e controlador. A alegoria do estado que queima o conhecimento através da ação pervertida e perversa do bombeiro que não apaga fogo, mas o ateia aos livros, para destruí-los, e, com eles, a memória, a história, a arte, a literatura, tem a motivação imediata dos anos duros das perseguições macarthistas nos Estados Unidos e o contraponto narrativo e poético do canto imortal da liberdade e do amor.

As Crônicas marcianas, por sugestão do editor, que queria publicar não um livro de contos, mas um romance, levaram os dois Bradbury a adotar um artifício engenhoso de composição que consistiu em criar capítulos-ponte entre os contos que integrariam o livro de modo a procurar dar-lhe organicidade e consistência de conjunto, apesar da autonomia das unidades narrativas de sua composição.

O resultado foi bem-sucedido do ponto de vista editorial, do ponto de vista comercial, do ponto de vista da aceitação crítica e popular, e inclusive do ponto de vista literário, já que o livro se tornou um clássico da literatura e inaugurou não apenas um truque de composição mas uma forma narrativa mista, a do conto-romance ou do romance-conto, a que ele voltaria com sucesso, como em O homem ilustrado, logo no ano seguinte, em 1951.

Mais uma vez, por sugestão de seu editor, ele busca construir pontes de ligação entre as pequenas ilhas narrativas que, se antes formavam um arquipélago de contos, agora se juntam em um continente andarilho e mutante cujo conteúdo se desenha nas tatuagens do corpo do ex-artista de curiosidades excêntricas de parques de diversão.

“O homem ilustrado” era já um conto, o mesmo que aparece aqui nesta coletânea e que, também por sugestão do editor, não aparecia no livro de 1951, do mesmo nome.

Para amarrar as ilhas, Bradbury imaginou, no prólogo, uma narrativa que emoldurasse os contos, e é nela que o jovem narrador, caminhando pelo Wisconsin, encontra outro estradeiro — o homem tatuado —, cujas ilustrações, no corpo, ganham vida à noite e formam quadros narrativos autônomos de antevisão de futuros sombrios. O último dos quadros a ganhar a vida, escrito no epílogo, mostra o homem ilustrado estrangulando o narrador.

O conto, este que aqui se oferece ao leitor, tem uma estrutura muito parecida com a da história-moldura do romance, com a diferença de que nele, agora, a vítima última do que as imagens prevêem é o próprio portador que em seu corpo carrega as previsões.

Manifesta-se, desse modo, uma outra característica do processo de criação e expressão literárias em Ray Bradbury.

Não só ele escreve muito, sistematicamente, como também reescreve tudo o que redige com a mesma e obstinada disciplina, reaproveitando, de modo sempre inventivo e inovador, textos, ideias, imagens, transformando contos em romances e novelas, novelas e contos em roteiros de filmes, em peças de teatro, de rádio e de televisão.

Do ponto de vista dos temas e do tratamento literário dados a eles, as Crônicas marcianas são também reveladoras de persistências na obra do autor.

Nesse sentido, vale anotar o que escreve Sam Weller a propósito de O homem ilustrado e da migração poética do futuro, da fantasia, do fantástico e do transcendente para a realidade social e política da América dos anos 1950 e vice-versa.

Tal como as Crônicas marcianas representavam um avanço considerável, estilística e tematicamente, em relação às histórias de Dark Carnival [seu primeiro livro, de 1947, sem tradução no Brasil], os contos selecionados para O homem ilustrado eram de primeira linha.

A linguagem era poética, as histórias, impregnadas de metáforas, os temas, transcendentes. Embora as histórias reunidas para esse novo livro fossem todas fantásticas — contos de fada de ficção científica que exibiam uma imaginação descolada e voando alto —, Ray estava novamente tratando de temas sociais e políticos com os quais já havia se envolvido profundamente em 1950: direitos civis, a ameaça da guerra atômica, o mau uso da tecnologia. Relevantes para 1950, a contínua relevância de O homem ilustrado, contudo, mostra que, tal como em Crônicas marcianas, Ray Bradbury mexia com lembranças importantes para os leitores; seus contos falavam para a experiência comum da cultura popular americana.

O filtro dessa identificação é poético e está armado sobre a nostalgia, a saudade que, como uma sanfona, comprime e empurra o som de lembranças, de expectativas, de esperanças, de abandonos, de solidões, de desertos, de cidades vazias, de países de infâncias para sempre perdidos.

Por mais estranho que pareça — e de fato é muito estranho —, toda vez que leio a perambulação dos personagens de Bradbury, seja ela galáctica, ou no jardim da casa de uma cidadezinha americana do Meio-Oeste, interplanetária ou regionalíssima, o som desse filtro tem um pouco da fúria estática de Faulkner e a tristeza alongada e penetrante da broca do bandoneon de Piazzola.

A melancolia é, assim, uma outra característica constante da literatura de Ray Bradbury, o que dá um amarrio bem trançado com o processo de sua identificação com a cultura popular americana, considerando as grandes experiências sociais, políticas e econômicas vivenciadas pelo autor e seu público leitor e reproduzidas metaforicamente nas fantasias de sua rica imaginação criativa.

A invasão de Marte é, desse modo, a metáfora da conquista do Oeste e a saga de sua conquista, o eco solitário de uma aventura perdida, a não ser pela memória dos pais e dos avós do autor de quem ele ouviu narrativas, na infância, que o embalaram para a admiração que na juventude ele teria, fascinado, pelo As vinhas da ira, de John Steinbeck:

Decidi, antes de tudo, que haveria certos elementos de similaridade entre a invasão de Marte e a invasão do Velho Oeste. [...] Eu havia ouvido de meus pais e de meus avós histórias de diversas aventuras no Oeste, mesmo tardiamente no ano de 1908, quando tudo já estava vazio, parado, em solidão. Aí me dei conta de que Marte, na realidade, poderia ser esse novo horizonte que o Billy Buck de Steinbeck contemplava das praias do Pacífico quando a “Marcha para o Oeste” já terminara e com as aventuras não havia nada o que fazer senão resignar-se com o seu fim.

Ray Bradbury nasceu, como se sabe, em 1920, tendo também vivenciado, na infância, o drama da Grande Depressão que abalou a sociedade americana por muitos anos desde 1929, ano de sua ocorrência. De família pobre, o jovem Ray levou consigo as consequências do acentuado empobrecimento do país e lutou bravamente para realizar o seu sonho obsessivo de tornar-se um grande nome da literatura e do espetáculo, em sua terra e em todo o mundo. Aventurou-se, escreveu e reescreveu desde cedo, vendeu jornais, frequentou o lado de fora das salas do sucesso em Hollywood e, aos poucos, foi entrando, depois convidado a entrar, a permanecer. Não saiu mais.

A experiência vivida pelos Estados Unidos com a Depressão e tê-la, ele próprio, vivenciado na juventude é também um elemento fundamental para a compreensão da obra de Bradbury, como o é também a sua experiência com a censura macarthista nos anos 1950, contra a qual foi um militante aguerrido e a qual lhe deu a motivação definitiva para a composição de Fahrenheit 451.

Além dos temas gerados pela realidade social que a pobreza espalhava sobre o orgulho nacional, para não dizer sobre a arrogância das classes dirigentes — Fitzgerald Scott, em seus romances e contos, capta como ninguém as luzes esmaecidas dessa hora cambiante da grande nação —, penso que no caso da depressão econômica é preciso ali ir buscar, mais do que as histórias, o filtro de subjetividade que a sua experiência instalou nos olhos, na alma e no coração do autor, para constituir-se, enfim, em um elemento-chave da estrutura narrativa de suas composições: a melancolia.

Moacyr Scliar, em um livro que traz um ensaio admirável sobre o tema, fala da melancolia como doença e como experiência existencial, isto é, como componente cultural da visão e da interpretação do mundo.

Nesse sentido, a melancolia é uma forma de ser, uma maneira de ser visto, um método de comportamento e um comportamento metódico, uma atitude estética e uma função social, um estado de espírito e um espírito em estado de contemplação, uma sensibilidade e uma idéia, um conceito e uma metáfora. É uma epidemia cultural no renascimento, transforma-se em doença, logo caracterizada com mais precisão em outras nomenclaturas cientificamente mais apropriadas aos estados de morbidez psíquica: depressão, desordem bipolar, psicose maníaco-depressiva.

Mas permanece como metáfora, como postura de existência, como condição de humanidade e, nesse caso, por analogia, pode-se dizer que depressão e melancolia, de certa forma, se equivalem.

No sentido que lhe dava Robert Burton (1577-1640) em seu famoso livro The anatomy of melancoly, e segundo a observação de Moacyr Scliar sobre o autor inglês, “a melancolia era, como a depressão, uma doença, mas não só uma doença, era uma experiência existencial. Tristeza, sim, e tristeza duradoura, e talvez até tédio, mas uma condição existencial envolta em aura filosófica, o que lhe dava dignidade e distinção”.

É dessa melancolia que se trata e que consegue alinhar uma estirpe de grandes artistas através dos tempos, enfurnando alguns famosos entre livros, em bibliotecas, como um refrão de comportamento entre misantropo e solitário, entre solitário e reflexivo, entre reflexivo e crítico, entre crítico e solidário com o homem e a fragilidade de sua condição humana.

Nessas bibliotecas em que se enfiaram gênios como Montaigne e Borges, procurou abrigar-se também Ray Bradbury, lendo e escrevendo, escrevendo e lendo, em um ritmo bipolar de recolhimento e depressão e de mania compulsiva para a produtividade, o excesso, a aventura, o fora-de-lugar, o fora-do-tempo, o futuro. E se Burton escreveu sua anatomia, Bradbury nos legou A medicine for melancoly (1959), trazendo 22 contos, entre os quais “O dragão”, que consta também da presente coletânea.

É como se no mesmo indivíduo se juntassem, e em harmonia convivessem, uma ética do trabalho e uma ética da aventura, sem conflitos, cumprindo com os deveres e, ao mesmo tempo, transgredindo as próprias regras de constituição dessas obrigações.

A depressão entra, desse modo, por um duplo caminho na obra de Ray Bradbury: é tema e evocação de um estado de coisas gerado por uma situação específica da economia americana, afetando também outros países; é um estado de espírito, uma disposição de atitude nascida, ela própria, das condições gerais em que se deu a depressão econômica, mas também, ao contrário, princípio ativo de reflexão crítica sobre essas mesmas condições em que nascem e que, agora, filtradas pela melancolia, devem reaparecer compreensíveis e tocantes de poesia e entendimento para o autor e para os leitores, personagens juntos do episódio histórico e psicológico transfigurado em literatura.

A melancolia acentua o tom lírico das narrativas de Bradbury, acentuado ainda mais pela busca persistente de títulos extraídos de grandes autores poetas, como é o caso de Shakespeare, em que foi buscar o título de Something wicked this way comics (1962), Yeats, The golden apples of the sun (1953), e Walt Whitman, I sing the body electric (1969).

Os contos que você vai ler nesta coletânea vão, sem dúvida, ajudá-lo a navegar pela fantasia cosmológica de Ray Bradbury, em uma viagem fantástica, parecida com a que os passageiros do navio Claude-Bernard empreendem em Os prêmios, de Julio Cortázar. Quanto mais avançam, menos saem do lugar; quanto mais nele ficam, mais avançam para a descoberta do mistério dos mistérios que se guarda na proa. A revelação do que ali se esconde é vazia de substância, é a forma do conteúdo de uma resposta para a qual não se encontrou a forma da pergunta adequada. É nada. É nada que não esteja na forma da vivência das experiências de vida compartilhadas. É memória de si mesma, como o futuro não pode ser outra coisa senão o que carrega do passado e do presente como potencial de novas realidades.

Por isso, a imaginação, o sonho, a fantasia apontam sempre, de um lado, para os mundos possíveis que a ficção científica quer descortinar; de outro, aprumam o foguete para a impossibilidade de mundos que não são, não foram, jamais serão. Mas poderiam ter sido e, desse modo, ainda que intangível, são para sempre, na forma em que a aventura literária oferece para a eternização de sua provisoriedade e das circunstâncias de sua ocorrência.

A melancolia é uma dessas formas. Ela desenha o trajeto da viagem que você vai fazer ao embarcar na leitura dos contos de Bradbury. É possível que você não saia do lugar, mas o ache estranho ao desembarcar dessa nave de prosas e histórias movida a poesia em combustão.

Boa viagem!


Carlos Vogt
Prefácio extraído de: A cidade inteira dorme e outros contos breves
Ray Bradbury
Editora: Globo Livros, selo Biblioteca Azul

Ano de publicação no Brasil: 2008

Páginas: 194

ISBN: 9788525043771

O Canon dos Prefácios em Ficção científica — Fredric Brown por sua esposa

 


APRESENTAÇÃO

 

Fred detestava escrever. Mas gostava muito de ter escrito. Era capaz de entregar-se a toda espécie de atividade só para retardar o momento em que finalmente tinha de sentar-se à máquina: espanava a mesa, tocava flauta, lia um pouco, tornava a tocar. Ou, se residíamos numa cidade em que não houvesse carteiro, iria pessoalmente ao Correio buscar a correspondência, e, de caminho, convidava alguém para uma partida — às vezes duas ou três — de xadrez ou cartas. Quando finalmente voltava para casa, decidia já ser tarde demais para dar início ao trabalho. Após dias dessa prática, sua consciência acabava por doer. Era então que se entregava efetivamente ao trabalho, produzindo algumas linhas, ou mesmo páginas inteiras. Fosse como fosse, os livros aí estão escritos.

Não era autor prolífico. Em média, enchia três páginas por dia. Às vezes, quando o livro parecesse escrever-se por si, sua produção diária subia para seis ou sete laudas; o que entretanto era raro.

Fred tinha o hábito de andar de um lado para outro, sempre que planejava uma nova história. E como ambos passássemos em casa boa parte do tempo, surgiu o problema de que eu lhe interrompesse o fio das ideias, ao dirigir-lhe a palavra em tais ocasiões. Coisa que o azucrinava deveras. Após tentarmos, sem êxito, várias soluções, sugeri que usasse um boné vermelho quando não quisesse ser incomodado. O que ele fez. Com o passar do tempo, acostumei-me a inspecionar-lhe a cabeça antes de dirigir-me a ele.

Sempre que acabava um livro, íamos viajar, e o tempo que passávamos fora dependia exclusivamente de nossa situação financeira no momento.

Havia ocasiões em que sua imaginação realmente encalacrava. E por mais que andasse de um lado para outro em casa, não chegava a parte alguma. Quando isto se deu, certa vez, durante a composição de um de seus primeiros livros, achou ele que uma viagem noturna de ônibus talvez ajudasse. Não tinha o hábito de recolher cedo e supunha que, depois de apagadas as luzes do coletivo, tudo estando às quietas, pudesse se concentrar melhor. Muniu-se, pois, de um bloco de papéis e de um lápis-lanterna, passou alguns dias fora e, quando regressou, o problema estava resolvido.

Fez muitas outras viagens desse tipo. Tantas, que eu até acabei capaz de prever quando estavam para acontecer. Nem sempre ele regressava com a solução que tinha ido buscar; mas, nessa eventualidade, jã vinha com a trama pronta para algum outro livro.

O clímax de sua carreira foi quando abandonou a leitura de provas para dedicar-se por inteiro à tarefa de escrever. Mas a ocasião em que se sentiu mais feliz e orgulhoso foi quando ganhou o Prêmio Edgar Allan Poe, dos Escritores Americanos do Mistério, pela melhor história no gênero: The Fabulous Clipjoint. Nenhuma obra posterior lhe deu satisfação comparável. Essa assinalava, entretanto, sua estreia como escritor. É compreensível que, dentre os livros que escreveu, gostasse mais de uns que de outros; porém The Fabulous Clipjoint, por ter sido o primeiro, era também seu predileto.

Até que não tivesse vários volumes publicados, continuou a escrever contos entre um e outro livro, para não lhe faltarem recursos quando se empenhasse em obra de maior fôlego. Posteriormente, porém, só escrevia ou esboçava uma história curta quando estivesse seguro de que realmente devia fazê-lo.

Durante muito tempo desejou escrever The Office; mas, como se tratasse de um romance em moldes convencionais, a obra representava, para ele, uma experiência totalmente nova. Sabia que seus livros de mistério e ficção científica seriam sempre bem vendidos, mas ignorava qual pudesse ser a acolhida a um romance escrito por um estreante nesse campo. Ainda não se podia dar ao luxo de produzir obra que não vendesse com certeza. Por fim, escreveu-o. E vendeu.

Experimentou escrever para a TV por breve tempo, mas decidiu que isso não era para ele e acabou de volta aos livros. De sua autoria têm sido publicadas algumas centenas de contos e vinte e oito romances, sendo esta a sua oitava coletânea.

Se bem que aprecie todos os livros de Fred, o meu favorito é The Screaming Mimi. Outros de que também gosto especialmente são Here Comes a Candle, The Lenient Beast, The Far Cry, His Name Was Death e Night of the Jabberwock.

Realmente, não sou entusiasta da ficção científica, porque a maioria das obras desse gênero são, a meu ver, excessivamente técnicas. Mas acho as de Fred de fácil leitura. Minhas prediletas dentre essas são The Lights in the Sky Are Stars e The Mind Thing. What Mad Universe é obra quase clássica que também se pode contar entre as minhas favoritas.

Gosto muito de suas coletâneas, e desta em especial, por ser sua última obra acabada. E, já que representa seu adeus ao público, espero que o leitor também a aprecie.


Elizabeth Brown

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Tradução de Jamir Martins

Editora Cultrix, 1974

O Canon dos Prefácios em Ficção científica — Machado de Assis e a Ficção científica

 


Machado de Assis e a ficção científica

Por Roberto de Sousa Causo

 

A FICÇÃO CIENTÍFICA brasileira existe desde meados do século XIX. Essa é uma afirmativa que, ao mesmo tempo em que é incontestável, exige explicações e qualificativos, especialmente porque a ocorrência de FC no país é bastante esporádica. O quadro de inconstância se dá, curiosamente, entre os anos de 1857 e 1957, um lapso de cem anos que forma o que chamei de Período Pioneiro da Ficção Científica Brasileira — e de saída admito que cem anos são de fato muito tempo para agrupar uma determinada circunstância literária.

 

Esse período, é claro, possui momentos e situações bastante variadas, mas é justo levantar dois pontos que circunscrevem muito da sua identidade: primeiro, a maior parte daquela produção ficcional aderia aos modelos narrativos e às convenções literárias do século XIX, especialmente o romance de aventura e de capa e espada, o conto de subjetividade romântica, a narrativa de mundo perdido, a sátira social e o panfleto utópico; segundo, a falta do entendimento — crítico ou popular — de tal produção como parte de um gênero literário específico.

 

O segundo aspecto citado começa a se alterar muito rapidamente a partir de 1957, ano em que os cientistas soviéticos puseram o Sputnik em órbita, e quando a ameaça de conflito nuclear entre as superpotências vencedoras da Segunda Guerra Mundial, além do advento de inovações tecnológicas como o computador, o aparelho de televisão, o voo supersônico e o míssil teleguiado entraram na consciência popular. São fatores que aproximam a realidade imediata das ideias da ficção científica. A FC é então redescoberta como um gênero literário com algo a dizer de concreto, profundo e urgente sobre o mundo. Nos Estados Unidos, a grande produção antes dirigida às revistas populares (chamadas de pulp magazines) já havia se decantado em um número de romances e antologias publicadas em livro — edições em capa dura destinadas ao mercado de bibliotecas públicas e clubes do livro; e edições em brochura e formato de bolso, em grandes tiragens, na assim chamada “revolução dos paperbacks” surgida durante a guerra.

 

No Brasil, dois livros lançados em 1958 marcam a “chegada” da FC como gênero no país: a antologia Maravilhas da ficção científica, editada por Fernando Correia da Silva e Wilma Pupo Nogueira Brito, e O homem que viu o disco-voador, um hábil romance de Rubens Teixeira Scavone, ambientado em São Paulo e na Ilha da Trindade. A antologia não trouxe nenhuma história brasileira, mas apresentou uma brilhante e erudita introdução do crítico Mário da Silva Brito, que, por si só, disparou um debate envolvendo a intelectualidade de São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro sobre a relevância ou irrelevância da FC para a literatura e a modernidade. O gongo soou, e no ringue dessa questão literária subiram figuras de peso como Otto Maria Carpeaux, Wilson Martins, Antônio Olinto, Maria de Lourdes Teixeira, João Camilo de Oliveira Torres, Clóvis Garcia, Alcântara Machado, Frederico Branco, Willy Lewin, Fausto Cunha, Laís Corrêa de Araújo, André Carneiro e o editor Gumercindo Rocha Dorea. Algo semelhante só viria a acontecer com os esforços de Luiz Bras (pseudônimo de Nelson de Oliveira) — seguidos ao seu ensaio-manifesto “Convite ao mainstream” (2009) — de aproximar a ficção científica da ficção literária brasileira, mas em menor escala e com menor polêmica.

 

Quase nesse mesmo instante, Gumercindo Rocha Dorea publica a coletânea de histórias Eles herdarão a Terra (1960), de Dinah Silveira de Queiroz, e a Antologia brasileira de ficção científica (1961), editada por si próprio — a primeira antologia de FC brasileira da história da literatura. Os livros saíram na coleção Ficção Científica GRD, que a partir daí abrigou diversos outros autores nacionais: Olinto, Carneiro, Cunha, Zora Seljan, Levy Menezes, Guido Wilmar Sassi, Álvaro Malheiros e o veterano Jerônymo Monteiro — que fundou a Associação Brasileira de Ficção Científica (o primeiro fã-clube de FC do país) e foi o editor do Magazine de Ficção Científica (1970-72), nossa versão da importante revista americana The Magazine of Fantasy & Science Fiction.

 

Seguindo as Edições GRD de Dorea, veio a EdArt, publicando Carneiro, Nilson D. Martello, Walter Martins, Domingos Carvalho da Silva e vários outros. O Clube do Livro também participou desse momento, publicando Scavone e Luiz Armando Braga. A atuação de Dorea foi impactante o suficiente para que Fausto Cunha, então um dos críticos mais relevantes do Brasil, chamasse de “Geração GRD” o elenco de escritores brasileiros que escreveram FC naquela década.

 

Surge aí, entre 1957 e 1972, a Primeira Onda da Ficção Científica Brasileira. Sem dúvida, a ditadura militar (1964-85) teve um papel tanto na descontinuidade da Primeira Onda quanto na reorientação do que seria a tônica da FC nacional na década de 1970. Esse momento seguinte — que pode ser chamado de Ciclo ou Onda de Utopias e Distopias (1972-82) — empurrou os autores da Primeira Onda para o fundo do palco, como as figuras que tiveram uma sobrevida nessa década, Carneiro, Cunha, Queiroz e Scavone. Para a frente veio uma FC que, muitas vezes de maneira alegórica e absurdista, fazia a crítica ao regime militar, à tecnocracia e à impertinência do Estado que tentava gerenciar a sexualidade e os costumes. Foram autores como Ruth Bueno, Mauro Chaves, Chico Buarque, Maria Alice Barroso, Herberto Sales, Márcio Souza e, especialmente, Ignácio de Loyola Brandão, cujo romance Não verás país nenhum (1981) se tornou o marco daquele momento. Essa tendência, porém, dissipou-se com a Abertura e a posterior redemocratização, sublimando-se na literatura pop brasileira e, mais tarde, na ficção autorreflexiva ou metaficcional brasileira.

 

O que veio na década de 1980 foi a Segunda Onda (1982-2015), marcada pelos fanzines e por um número de autores que, ao contrário dos momentos anteriores, eram majoritariamente leitores de FC, cientes de suas convenções e das características como gênero literário. Por isso mesmo, desenvolveram tendências mais variadas, incluindo a FC hard, a história alternativa, a FC feminista, a sociológica e a experimental. Braulio Tavares, Jorge Luiz Calife, Ivan Carlos Regina, Finisia Fideli, Roberto Schima, Simone Saueressig, Ivanir Calado, Guilherme Kujawski, Gerson Lodi-Ribeiro, Fábio Fernandes, Daniel Fresnot, Marien Calixte, João Batista Melo, Miguel Carqueija, Cesar Silva e Carlos Orsi são alguns dos autores do período, que também viu surgir o primeiro movimento literário da FC nacional em torno do “Manifesto antropofágico da ficção científica brasileira” (1988) de Regina, que propunha mais brasilidade e antropofagia cultural.

 

Um núcleo desses autores — Lodi-Ribeiro, Orsi, Silva, Octávio Aragão e o pesquisador Marcello Simão Branco — uniu-se em uma editora cooperativada, a Ano-Luz, e mais tarde formou (com Fernandes, Max Mallmann e outros) o que chamei de Grupo da Renovação. O grupo se tornou influente junto à Terceira Onda da Ficção Científica Brasileira (2004 ao presente), momento em que a FC se aproxima da fantasia e do público jovem e passa por um esforço editorial de atualização de tendências — o cyberpunk e o steampunk, o New Weird e a FC queer, por exemplo. Seus autores propagam a importância da internet em suas posições literárias e se apresentam pela primeira vez como uma novidade no campo, própria do século XXI. Assumem blogs, vlogs e revistas eletrônicas, e advogam a popularização da literatura fantástica, levantando a ficção pulp e a busca direta do público leitor como bandeiras. Entre seus nomes de maior relevo e importância estão Jacques Barcia, Cirilo S. Lemos, Ana Cristina Rodrigues, Tibor Moricz, Flávio Medeiros Jr., Cristina Lasaitis, Enéias Tavares, Christopher Kastensmidt, Mustafá ibn Ali Kanso, Felipe Castilho, Aline Valek e Samir Machado de Machado. Um destaque importante é Luiz Bras, que se volta à FC brasileira nesse momento, impondo uma perspectiva mais literária e experimental.

 

***

OS DOIS TEXTOS de Machado de Assis reunidos aqui fazem parte, evidentemente, do Período Pioneiro da FC Brasileira. Rui de Leão foi publicado originalmente em 1872 no Jornal das Famílias, e O imortal dez anos depois, em partes, na revista A Estação.

 

O fato de Machado ter escrito alguma forma de ficção científica — e essa é outra ressalva que se deve fazer sobre o Período Pioneiro — não deve causar estranhamento. Os dois contos em questão, por exemplo, foram precedidos por “O fim do mundo em 1857” (1856), de Joaquim Manuel de Macedo, autor daquele que é considerado o primeiro romance brasileiro, A moreninha (1844). O próprio Macedo retornaria ao fantástico posteriormente, com A luneta mágica (1869). A historiografia da FC brasileira também registra Páginas da história do Brasil, escrita no ano de 2000 (1868-72), de Joaquim Felício dos Santos, e, entre os dois textos de Machado, tem-se o marco da publicação de O doutor Benignus (1875), de Augusto Emilio Zaluar, o melhor candidato, até o momento, a primeiro romance brasileiro de ficção científica. Vinte e poucos anos depois, Emília Freitas publicaria o seu também pioneiro romance feminista de aventura e espiritualismo, A rainha do ignoto (1899). Por fim, o próprio Machado também é autor da fantasia orientalista “As academias de Sião”, que propõe a troca temporária de corpos entre o monarca da antiga Tailândia e uma de suas concubinas.

 

A partir desse primeiro momento, muitos grandes nomes da literatura nacional escreveram algum tipo de FC: Lima Barreto, Monteiro Lobato, Menotti del Picchia, Érico Veríssimo, Rachel de Queiroz e Guimarães Rosa. No caso de Machado, seu posicionamento na linha evolutiva dos movimentos literários é complicada por sua produção variada e prolífica, sinal da disposição de ocupar os espaços literários disponíveis na sua época. José Luiz Passos, autor de Romance com pessoas: a imaginação em Machado de Assis (2007), reconhece: “Há grande ambição num escritor que, na sequência dos primeiros livros, tenta todos os [formatos] que a literatura do seu tempo lhe punha à disposição”.

 

A relação aqui é menos ideária — isto é, obedece menos a um receituário como o do Realismo, por exemplo — e mais de aproveitamento pessoal de práticas literárias em circulação na época, coloridas com a personalidade do escritor. Neste caso, aquilo que viria a compor a nossa imagem do que é a FC como gênero estava, no século XIX, difuso na narrativa de aventura a terras estranhas, ou no conto gótico, ou na sátira social e política. Machado pescou esses e outros elementos, e incidentalmente fez aquilo que nosso olhar retrospectivo identifica como FC. Cabe lembrar que Machado demonstrou em vários contos da década de 1880 o seu interesse por Edgar Allan Poe, autor de gótico americano, pioneiro da literatura de horror e de ficção científica.

 

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RUI DE LEÃO (ou “Ruy de Leão”) abre com o personagem-título, um fidalgo português, vivendo entre os tamoios. A história narra com ironia sua aculturação entre os nativos, com direito a nudez e antropofagia, guiada pelo mui filosófico pajé da aldeia, seu sogro. Moribundo, o pajé lega ao genro um frasco contendo uma poção que traz a imortalidade. Rui hesita em beber, mas mais tarde conhece um padre em missão na área e se nega a batizar o filho que teve com a filha do pajé. Como que reagindo à praga do padre, ele adoece na sequência e recorre à poção.

 

Depois disso ele tem seu vigor redobrado, não envelhece mais e não perece de agressões de outro modo fatais. Vai parar na Europa, onde apavora alguns com sua situação inédita. Aos poucos, é mais a condição de imortal, e menos as peripécias advindas dela, que assume o centro da narrativa.

 

A versão que Machado realizou com O imortal tem estrutura mais sofisticada, com as aventuras de Rui de Leão narradas entre uma espécie de “parêntese”, já que a abertura e a conclusão estão a cargo de um filho do personagem, médico homeopata vivendo no século XIX e narrando os fatos a um grupo de amigos em uma noite chuvosa. É um detalhe que sublinha a inspiração do conto gótico sobre a história machadiana.

 

A ironia tem uma presença mais discreta, assim como o percurso do personagem pela história brasileira e europeia ganha certa sofisticação. Mais do que isso, para a perspectiva da FC, o escritor nos dá um argumento de grande interesse, dada a sua raridade dentro do gênero na época: “A ciência de um século não sabia tudo; outro século vem e passa adiante. Quem sabe se os homens não descobrirão um dia a imortalidade, e se o elixir científico não será esta mesma droga selvática?” Surge aí uma hipótese científica para fundamentar a premissa, mesmo que não problematizada. Além disso, Machado foi presciente ao antever uma iniciativa que se fixa em fins do século XX até o presente, da busca científica na floresta tropical e ao conhecimento dos povos nativos e tradicionais por novos medicamentos e terapêuticas.

 

O tema da imortalidade integra-se igualmente à ficção científica por via da tradição gótica, levando o crítico inglês Brian Stableford a afirmar: “A imortalidade é um dos leitmotifs básicos do pensamento especulativo; o elixir da vida e a fonte da juventude são objetivos hipotéticos das buscas intelectuais e exploratórias clássicas”. Stableford também observa que “uma coisa imediatamente perceptível sobre essa rica tradição literária é que a imortalidade é frequentemente tratada como um falso objetivo, algo como uma maldição” — bem dentro das aflições de Rui de Leão nos dois textos reproduzidos aqui. Por outro lado, a biografia do próprio Machado de Assis nos sugere um outro nível de ironia, já que ele alcançou um tipo de imortalidade, talvez menos vão, ao ser eleito para a Academia Brasileira de Letras — que ajudou a fundar — em 1897.

 

As peripécias de Rui de Leão, por sua vez, estão dentro do leque de aventuras físicas e sentimentais da literatura da época e, em uma análise bastante sofisticada de O imortal, o prof. João Adolfo Hansen, da Universidade de São Paulo, observa que enredo de Machado incorpora os clichês do Romantismo sobre o homem que ascende socialmente e conquista a mulher aristocrática, ou que se envolve em revoltas libertárias e combate invasores ou indígenas, de modo que seu agrupamento em uma única narrativa — e vividos por um único personagem, como um Forrest Gump do século XVII [1] — formaria uma crítica irônica aos excessos daquele movimento. Algo, inclusive, que Machado fez em vários outros momentos, como nos contos “Aurora sem dia” e “A chinela turca”.

 

Não obstante essa hipótese de uma postura satírica, os contos não deixam de pertencer à ficção científica. Assim como o autor da sátira política não deixa de pertencer à sociedade ou ao país que ele ou ela satirizam.

 

A Plutão presta um grande serviço ao pesquisador e ao leitor de FC ao disponibilizar esta edição com as duas histórias lado a lado. Certamente, a ficção científica no Brasil é um gênero importante e rico demais para que suas obras de interesse caiam no esquecimento.

 

Roberto de Sousa Causo

São Paulo, maio de 2018


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Ficha Bibliográfica do Livro

Título: Sobre a Imortalidade de Rui de Leão

Autor: Machado de Assis

Editora: Plutão Livros

Ano de publicação: 2019 (edição mais recente disponível)

Páginas: 76

Descrição: Este livro reúne dois contos escritos por Machado de Assis no século XIX: "O imortal" (1872) e "Rui de Leão" (1882), ambos explorando o tema da imortalidade a partir da trajetória fantástica de Rui de Leão, um europeu que se casa com uma indígena no Brasil do século XVII e recebe de um pajé o segredo da vida eterna. Os textos refletem sobre a passagem do tempo, perdas, conquistas históricas e o tédio vinculados à existência imortal.

O Canon dos Prefácios em Ficção científica — Azazel por Isaac Asimov



Introdução


Em 1980, Eric Potter me pediu para escrever mensalmente um conto de mistério para uma revista da qual ele era o editor. Concordei, porque não consigo dizer não a pessoas simpáticas (todos os editores que conheço são pessoas simpáticas).

 

O primeiro conto que escrevi foi uma espécie de mistério-fantasia, estrelado por um pequeno demônio de dois centímetros de altura. Intitulei-o “Ajuste de Contas”. Eric Potter aceitou-o e publicou-o. No conto havia um personagem chamado Griswold, que era o narrador, e três outros homens (incluindo um personagem que era eu mesmo, embora isto não fosse declarado explicitamente, e que contava a história para os leitores), que eram sua audiência. Os quatro costumavam se encontrar toda semana no Clube Union. Eu pretendia escrever uma série de contos a respeito desses encontros no Clube Union.

 

Quando, porém, escrevi uma segunda história com o mesmo pequeno demônio de “Ajuste de Contas” (o novo conto se chamava “Uma Noite de Música”), Eric recusou-se a publicá-la. Ele me explicou que, na sua opinião, um pouco de fantasia não tinha importância, mas não queria que isso se tornasse um hábito.

 

Assim, coloquei de lado “Uma Noite de Música” e escrevi uma série de contos de mistério sem nenhum elemento de fantasia. Trinta dessas histórias (que, de acordo com as recomendações de Eric, não podiam ter mais de 2.000 a 2.200 palavras) foram mais tarde reunidas no meu livro The Union Club MisterIes (Doubleday, 1983). Não incluí “Ajuste de Contas” nessa coleção porque achei que, como o personagem principal era o pequeno demônio, não combinava com o resto das histórias.

 

Entretanto, eu não havia esquecido “Uma Noite de Música”. Odeio desperdícios, e não suporto a ideia de deixar algo que escrevi sem ser publicado. Por isso, procurei Eric e disse: “Aquela história “Uma Noite de Música”, que você não quis publicar... posso submetê-la a outra editora?”

 

Ele respondeu: “Claro que sim, contanto que você mude os nomes dos personagens. Quero que as histórias a respeito de Griswold e seus amigos sejam uma exclusividade da minha revista!”

 

Foi o que fiz. Mudei o nome de Griswold para George e reduzi a audiência para apenas uma pessoa, o personagem que contava a história e que era eu mesmo. Depois de fazer isso, vendi “Uma Noite de Música” para The Magazine of Fantasy and Science Fiction (F & SF). Pouco depois, escrevi outra história da série que já me havia acostumado a chamar de “Histórias de George e Azazel” (Azazel era o nome do demônio). Esta segunda história, “O Sorriso Roubado”, também foi comprada pela F & SF.

 

Acontece que sou diretor editorial de uma revista de ficção científica, a Isaac Asimov's Science Fiction Magazine (IASFM), e Shawna McCarthy, na época a editora da revista, alegou que não era justo que eu publicasse meus contos na F&SF.

 

Eu disse a ela: “Shawna, essas histórias de George e Azazel são contos de fantasia, e a IASFM é uma revista de Ficção científica.”

 

Ela replicou: “Então, transforme o pequeno demônio e sua mágica em um pequeno ser extraterrestre com uma tecnologia avançada e venda as histórias para mim.”

 

Eu fiz isso, e como gostava das histórias de George e Azazel, continuei a escrevê-las, de modo que agora posso incluir dezoito delas neste livro, que chamei de Azazel. (Apenas dezoito histórias puderam ser incluídas porque, livre das limitações impostas por Eric, pude tornar as histórias de George e Azazel duas vezes mais compridas que as de Griswold.)

 

Além disso, deixei mais uma vez de fora “Ajuste de Contas”, por achar que não tinha exatamente o mesmo sabor que as histórias subsequentes. Por ser a inspiração original de duas séries diferentes, “Ajuste de Contas” teve a triste sina de não se encaixar bem em nenhuma delas. (Não importa: o conto já apareceu em uma antologia, e pode aparecer no futuro com outros disfarces, de modo que o leitor não precisa ficar com muita pena.) Existem algumas observações que eu gostaria de fazer a respeito das histórias. Coisas que vocês provavelmente vão observar sozinhos, mas acontece que sou um tagarela.

 

1) Como já disse, omiti a primeira história que escrevi a respeito do pequeno demônio porque achei que não combinava com as outras. Minha linda editora Jennifer Brehl, porém, alegou que era indispensável uma primeira história contando como eu e George nos conhecemos e como o pequeno demônio passou a fazer parte da vida de George. Como Jennifer, embora seja um anjo de doçura, é impossível de contrariar quando cerra os pequenos punhos, escrevi um conto chamado “O Demônio de dois Centímetros” que atende a suas exigências e é a primeira história deste livro. Além disso, Jennifer decidiu que Azazel seria um demônio, e não um extraterrestre, de modo que estamos de volta ao terreno da fantasia. (A propósito: Azazel é um nome bíblico, e a maioria dos entendidos pensa tratar-se do nome de um demônio, embora a história seja um pouco complicada.)

 

2) George é mostrado como uma espécie de parasita, e eu detesto parasitas. Mesmo assim, gosto de George, e espero que vocês também. O personagem que conta as histórias (que é na verdade Isaac Asimov) é frequentemente insultado por George e no final sempre acaba perdendo alguns dólares para ele, mas não me importo. Como explico no final do primeiro conto, as histórias que ele conta valem o que ele me toma. Além disso, ganho muito mais dinheiro com esses contos do que eu dou para George... especialmente se levarmos em conta o fato de que o dinheiro que dou para ele é de mentira.

 

3) Lembrem-se, por favor, de que essas histórias são sátiras humorísticas. Se acharem o estilo exagerado e “anti-asimoviano”, essa foi a minha intenção ao escrevê-los. Tomem isto como advertência. Não comprem o livro esperando alguma coisa diferente, caso contrário, poderão ficar desapontados. Finalmente, se detectarem em algumas passagens uma certa influência de P. G. Wodehouse podem estar certos de que não é coincidência!


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Tradução de RONALDO SÉRGIO DE BIASI

O Canon dos Prefácios em Ficção científica — Brian Aldiss e Stanley Kubrick


Brian Aldiss

prefácio para a coletânea:
SUPERBRINQUEDOS DURAM O VERÃO TODO
E outros contos de um tempo futuro


Prefácio

Tentando agradar

 

“Superbrinquedos duram o verão todo” é a história de um garotinho que não consegue agradar à mãe por mais que se esforce. Confuso com a reação dela, o menino não percebe que ele é um andróide, uma construção habilidosa de inteligência artificial, assim como seu único aliado, o ursinho de pelúcia Teddy.

 

Foi essa a história que comoveu Stanley Kubrick e que ele quis tanto transformar em filme. Depois de certo esforço de persuasão, vendi os direitos para ele e, por algum tempo, trabalhamos juntos num possível roteiro.

 

Como seria de esperar, achei-o genial mas exigente. Afinal de contas, ele batalhara muito para obter independência. Exigia tanto de si quanto de todos à volta dele.

 

Presenciei um exemplo dessa independência quando os figurões da Warner Brothers quiseram conhecê-lo. Alegando como desculpa um ódio mortal de avião, em vez de se locomover até os Estados Unidos, Kubrick conseguiu que os diretores, de cujo apoio financeiro dependia, fossem a Londres. Estes, uma vez lá, o convidaram para uma reunião no hotel. Kubrick disse que estava ocupado demais. Os executivos da Warner tiveram de fazer nova viagem, dessa vez até St. Albans, para vê-lo.

 

Kubrick tratava seus funcionários com esse mesmo egoísmo: era genial mas exigente. Precisava não só manter a independência como também alimentar o mito, o mito de um gênio-ermitão criativo porém excêntrico.

 

Meu contato com ele foi amistoso. Mencionei seus três filmes de ficção científica em meu livro Billion year spree [Orgia do ano bilhão], que traça uma história do gênero, observando que Doutor Fantástico, 2001: uma odisséia no espaço e Laranja mecânica fizeram dele “o grande escritor de ficção científica da época”. Kubrick calhou de comprá-lo e ficou satisfeito com o comentário.

 

Um belo dia, em meados dos anos 70, recebi um telefonema de Kubrick. Para mim foi uma surpresa. Ele embarcou num longo monólogo, presumivelmente para me testar como ouvinte. Bem, acho que devo ter passado no exame, porque me convidou para um almoço. Encontramo-nos em julho de 1976, num restaurante em Boreham Wood.

 

Nessa época, Kubrick parecia um perfeito Che Guevara, dos pés à cabeça — botas pesadas, traje verde-oliva, boina enterrada na cabeleira encaracolada e barba. Conversamos sobre filmes, ficção científica e bebida. Foi uma conversa absolutamente agradável e bastante demorada.

 

Seu filme Barry Lyndon fora lançado no ano anterior e, embora a fotografia seja de uma beleza ímpar, a frigidez de cristal polido apresentada no filme não caiu no gosto do público. Talvez Kubrick estivesse incerto sobre que filme rodar em seguida. Passamos a ter um relacionamento cordial; encontramo-nos uma ou duas vezes para almoçar, no decorrer dos anos, e sempre falávamos sobre o tipo de filme que poderia fazer sucesso.

 

Recomendei Martian time-slip [Tempo de lapso marciano], um romance dos anos 60, de Philip K. Dick. Ele não se interessou. Mais tarde, dois anos de minha vida seriam ocupados tentando levar esse mesmo romance para a tela, escrevendo o roteiro em parceria com meu então agente para a mídia, Frank Hatherley.

 

Minha mulher Margaret e eu fomos até o Castelo Kubrick algumas vezes e almoçamos com Kubrick e sua mulher Christiane, pintora, cujas telas brilhantes iluminavam diversas paredes da casa. Kubrick gostava de atores e os admirava. Achava Peter Sellers um gênio. Possuía um pequeno elenco de confiança, gente como Sterling, Hayden, Philip Stone, Norman Rossiter e Sellers. “Você não precisa de nenhum diálogo”, ele me disse certa vez. “Pode jogar fora. Um bom ator pode transmitir tudo só com um olhar.”

 

Enquanto filmava o romance de Stephen King O iluminado, ele permaneceu necessariamente esquivo. Voltou a aparecer em agosto de 1982, mencionando numa carta nosso último almoço, ocasião em que “passamos quase o tempo todo falando de Guerra nas estrelas e dos motivos que levam histórias até bem bobas a se tornarem de fato uma forma de arte”. Era verdade; naquele dia embarcamos numa conversa fascinante em que tentamos levantar os elementos necessários para fazer, com sucesso, um filme de ficção científica com laivos de conto de fada. Entre os elementos enumerados estavam um rapaz de origem humilde que precisa combater um mal monstruoso, um grupo variado de sujeitos, inúmeros desafios superados, o mal derrotado apesar de todos os empecilhos e o jovem que obtém a mão de uma princesa. Depois demos risada: tínhamos feito uma descrição quase que cena por cena de Guerra nas estrelas.

 

Aquela carta de Kubrick continuava com uma conversa sobre meu conto “Superbrinquedos”. A pedido dele, eu lhe enviara alguns de meus livros, inclusive The Malacia tapestry [A tapeçaria Malácia] e Moment of eclipse [Época de eclipse], uma coletânea de contos publicada pela Faber & Faber que incluía “Superbrinquedos duram o verão todo”. Kubrick escreveu: “O que me ficou, no entanto, foi a convicção de que esse conto é com certeza um ótimo começo para uma história mais longa, ainda que, infelizmente, eu não tenha tido nenhuma outra idéia sobre como desenvolvê-la. De todo modo, estou começando a achar que o velho subconsciente não engata para valer em algo que não lhe pertence...”.

 

Esse conto — no fundo uma vinheta — fora publicado inicialmente na revista Harper’s Bazaar em dezembro de 1969; em 1982, eu tive alguns problemas sérios com o fisco, de modo que, muito relutantemente, vendi o texto a Kubrick. Ele comprou quase todos os direitos; lembro-me de que a frase “para sempre” aparecia com bastante freqüência no contrato. Em retrospecto, percebo que o fato de o conto ter se tornado seu não causou nenhuma grande mudança no processo criativo. Kubrick continuou não conseguindo fazer do conto um filme.

 

Depois de muito vaivém entre agentes, o contrato foi assinado em novembro de 1982. E eu fui trabalhar com ele no roteiro.

 

Todos os dias, uma limusine aparecia em minha porta, em Boars Hill, e eu era levado ao Castelo Kubrick, uma residência monumental, nas proporções de um Blenheim, nos arredores de St. Albans. Quase sempre ele estivera acordado metade da noite, vagando por seus imensos aposentos desolados, entulhados de aparelhagens. Ele surgia todo amarfanhado, dizendo: “Vamos tomar um pouco de ar, Brian”.

 

Nós abríamos a porta para todo aquele verde interminável. Kubrick acendia um cigarro e dávamos alguns passos, cerca de metade de um campo de críquete, com ele resfolegando pelo caminho. “Chega de ar fresco”, me dizia então. E lá íamos nós de volta para dentro. Era uma espécie de brincadeira. Nosso relacionamento também era uma espécie de brincadeira.

 

A certa altura, depois de introduzir uma nova personagem no roteiro, Kubrick me perguntou: “Brian, o que será que as pessoas que não fazem filmes nem escrevem ficção científica fazem da vida?”. Ele era tão inteligente, tão dedicado a seu trabalho. Infelizmente, também era impaciente e não permitia nem discussão nem exame de algum fio narrativo do qual não gostasse de pronto.

 

No início, eu não conseguia enxergar de que forma minha vinheta poderia ser transformada em um longa-metragem. Aí um dia, durante o café da manhã, de repente vi tudo. “Achei!”, disse eu a Margaret. Liguei para Kubrick. “Venha até aqui”, ele falou.

 

Eu fui. Contei-lhe. Ele não gostou.

 

E assunto encerrado. Kubrick não era homem de aceitar uma idéia e depois virá-la do avesso para ver se tinha algum mérito. Ainda que isso fosse um sinal de clarividência, talvez houvesse também uma certa fraqueza naquele tipo de abordagem.

 

Indício funesto, talvez, foi o fato de ter recebido de Kubrick, assim que começamos o projeto, um exemplar ricamente ilustrado da história de Pinóquio. Eu não conseguia, ou não queria, ver os paralelos existentes entre David, meu andróide de cinco anos, e aquela criatura de madeira que se torna humana. Acabei percebendo que Kubrick queria que David se tornasse humano e queria também que a Fada Azul se materializasse. Nunca, jamais, em sã consciência, reescreva antigos contos de fada, eu diria.

 

Trabalhar com Kubrick foi sem dúvida instrutivo. O problema é que eu vinha trabalhando sozinho por cerca de trinta anos; não me agradava a idéia de trabalhar com e, menos ainda, sob qualquer pessoa. Mas nosso relacionamento foi amistoso.

 

Quando empacávamos, saíamos para dar uma volta e dizer alô a Christiane. Em geral ela estava pintando numa enorme sala vazia, com janelas magníficas para a vasta savana kubrickiana. Kubrick também gostava de preparar o nosso almoço, em geral bife e vagem.

 

Eu não conseguia ver aquela minha vinheta transformada em longa-metragem. Ele me tranqüilizava. Dizia que era mais fácil aumentar um conto do que reduzir um romance para um filme. Um filme continha no máximo sessenta cenas, ao passo que um romance podia conter centenas, cada uma delas diluindo-se em outra, sem despesas adicionais.

 

Além disso, ele dizia, já tinha conseguido transformar o conto de Arthur C. Clarke, “O sentinela”, também de duas mil palavras como “Superbrinquedos”, num grande filme. Poderíamos fazer o mesmo com meu conto. Só mais tarde percebi a falha dessa linha de raciocínio: enquanto a história de Arthur olha para fora, para o sistema solar, minha história olha para dentro.

 

Começamos a trabalhar a sério. Todos os dias, eu anotava nosso progresso num grande livro vermelho. Quando voltava para casa, à noite, Margaret e eu conversávamos um pouco sobre como fora o dia, tomando um drinque. Depois eu jantava e em seguida ia para meu escritório transcrever as notas em forma de roteiro sem diálogo, como Kubrick queria. Então eu enviava os trechos para ele, por fax. Na época ainda estava na moda ter fax; não poderíamos ter trabalhado tão bem sem ele.

 

Concluída essa tarefa, eu anotava num diário particular os acontecimentos e os não — acontecimentos do dia. Houve por exemplo a semana em que o mundo parecia estar mergulhando na recessão. Kubrick acompanhava de perto os mercados de capital. Um dia entrou na sala onde eu trabalhava e aconselhou, muito soturno: “Brian, se eu fosse você, vendia todas as suas ações e comprava barras de ouro”. Minha barra de ouro teria sido do tamanho de um tablete de goma de mascar.

 

Na manhã seguinte voltávamos a nos reunir e repassávamos o trabalho do dia anterior, muitas vezes apenas para descartá-lo por completo. Não é de admirar que fumássemos feito chaminés e tomássemos galões de café...

 

Por uns tempos tudo andou bem. Escrevi um episódio chamado Taken out [Arrancado] em fevereiro de 1983 e o enviei por fax no meio da noite. Ele me ligou, entusiasmado. “É simplesmente brilhante. Estou muito emocionado. O jeito de fazer ficção científica é este, contar as coisas como se tudo fosse normal, sem que nada precise ser explicado.”

 

Eu: “Em outras palavras, você trata o leitor/espectador como se ele também fizesse parte do futuro que você está descrevendo”.

 

Kubrick: “Acho que sim, você simplesmente não entra em todos aqueles detalhes científicos horrendos”.

 

Eu: “Quanto mais você explica, menos convincente fica”.

 

Kubrick: “Parece que você tem duas maneiras de escrever — uma brilhante e outra não tão boa assim”.

 

Tivemos nossas desavenças. Nunca mais consegui agradá-lo tanto quanto com Taken out. Embora muitas vezes déssemos boas gargalhadas enquanto trabalhávamos, não fazíamos progresso. Era trama atrás de trama escavada na areia.

 

Kubrick não queria nem ouvir falar em confiar na narrativa, como eu advogava. Salientava que, mesmo que um filme pudesse conter no máximo sessenta cenas, para ele eram necessárias apenas umas oito “unidades não-submersíveis”, como ele as chamava (conseguimos três, antes de interromper o trabalho, adaptando dois de meus contos anteriores — “All the world’s tears” [Todas as lágrimas do mundo] e “Blighted profile” [Perfil iluminado] — ao conto original).

 

Blade Runner — O caçador de andróides, de Ridley Scott, quase inteiro em disco laser.

 

Kubrick estava convencido de que um dia a inteligência artificial tomaria conta do mundo e de que a humanidade seria superada. Os seres humanos não eram confiáveis nem inteligentes o suficiente. Durante um de nossos freqüentes impasses, discutimos a possibilidade da derrocada da União Soviética, com o Ocidente enviando tanques-robôs e andróides para salvar o que fosse possível. Era um acontecimento dramático o bastante para insuflar nossa imaginação. Isso foi em 1982 e nós entendíamos que poderia ocorrer um colapso econômico na URSS — mas como seria? Em que circunstâncias?

 

Depois de um ou dois dias, desistimos da idéia. Mas vamos supor que tivéssemos pensado em todas as possibilidades e tivéssemos sido capazes de reproduzir exatamente os verdadeiros acontecimentos de 1989, que estavam a sete anos de distância apenas. Vamos supor que tivéssemos criado uma figura à Gorbachev para presidente da União Soviética, que tivéssemos mostrado a Hungria abrindo seus portões para que os alemães do Leste entrassem em Berlim e no Ocidente, que tivéssemos mostrado o Muro de Berlim sendo derrubado, governos comunistas renunciando ao poder, ditadores sendo executados, o fim da Guerra Fria e o maior movimento jamais acontecido em um único dia na história dos povos europeus. Na verdade, um momento único na história mundial.

 

E se tivéssemos posto isso tudo na tela em 1982? Ninguém teria acreditado em nós. Até mesmo a ficção científica é a arte do plausível. Então, talvez digam os críticos, aí está a fraqueza da ficção científica. É a vida real que se encarrega da arte do incrível, como fez no final dos anos 80 — e continua a fazer, com a ascensão e o crescimento da União Européia.

 

Os anos foram se arrastando. Não chegávamos a parte alguma. Kubrick foi ficando impaciente. Mas a Fada Azul ainda ressurgia dos mortos. Eu tinha a sensação de estar sendo tragado, ao mesmo tempo que tentava continuar sendo marido e pai.

 

Kubrick via um problema fundamental com David, o menino andróide. Ele poderia perfeitamente ser representado, no filme, por alguém de carne e osso fantasiado de andróide. No entanto, o perfeccionismo de Kubrick sugeria que o melhor era construir um andróide de verdade. Examinamos essa possibilidade com alguma profundidade. O primeiro obstáculo tecnológico a superar era fazer a criaturinha se mover de forma a parecer um menino mesmo — andar, virar, sentar e por aí afora. A tecnologia do cinema progrediu muito, de lá para cá, claro, e hoje em dia a simulação computadorizada daria um jeito nisso.

 

Em 1987 foi lançado Nascido para matar. Essa retomada tardia da Guerra do Vietnã foi um grande sucesso no Japão, mas nem tanto em outros lugares do mundo. Com a ajuda de trinta e seis palmeiras importadas da Espanha, Kubrick criou um Vietnã no meio de algumas ruínas da zona leste londrina (onde hoje é Canary Wharf, no East End). “É quase impossível construir uma ruína convincente”, dizia ele. “E o entardecer do inverno na Inglaterra se parece com o entardecer no Vietnã.” Os atores pelados filmaram em pleno inverno, com aquecedores soprando ar quente o tempo todo sobre eles, para que não ficassem arrepiados. Ah, a magia do cinema!

 

Por volta de 1990, estávamos em dificuldades. Agentes e advogados trocavam cartas. Kubrick e eu estávamos trabalhando com a possibilidade de inundar Nova York apenas para que a Fada Azul pudesse emergir das profundezas. Tentei persuadi-lo a criar um grande mito moderno capaz de rivalizar com Doutor Fantástico e com 2001 e a fugir dos contos de fada.

 

Era absurdo de minha parte. Fui sumariamente eliminado do filme.

 

Ele nunca disse adeus nem pronunciou nenhuma falsa palavra de agradecimento. Não. Um novo cigarro foi aceso, as costas foram viradas. E “Superbrinquedos” foi rebatizado de “A.I.” — e destinado a jamais ser rodado por ele.

 

Kubrick era dois tipos de gênio. Além dos filmes, com sua variedade fascinante, possuía o dom de manter o mundo longe de sua porta criativa e o de cultivar a lenda de ermitão. Ele sempre soube que o tempo era curto.

 

Os gênios não se preocupam com as cortesias do dia-a-dia. Têm outras coisas na cabeça. O melhor a fazer é não ficar sentido com seus hábitos mais mesquinhos. Nem mesmo Arthur C. Clarke, o parceiro de Stanley em 2001, foi capaz de expandir minha vinheta e transformá-la num grande filme. Eis aí uma lição para todos nós, se ao menos eu conseguisse imaginar qual seja.

 

Foi um alívio seguir meu próprio — e doce — caminho de novo. Durante alguns anos havia servido como um dos tentáculos de Kubrick. Ele tinha muitos tentáculos. Numa ocasião, quando debatíamos o conceito de usar um andróide de verdade, Stanley declarou que os americanos viam os robôs apenas como ameaças. Eram os japoneses que de fato gostavam dos robôs; e seriam eles que com toda certeza gerariam os magos da eletrônica capazes de construir os primeiros andróides genuínos. Chamou Tony Frewin, seu fiel braço direito.

 

“Ponha o Mitsubishi na linha.” (Digamos que fosse Mitsubishi, já que me esqueci realmente do nome da empresa.)

 

“Com quem você quer falar na Mitsubishi, Stanley?”

 

“Ponha o senhor Mitsubishi na linha.”

 

Um pouco depois, o telefone tocou. Kubrick atendeu. Uma voz do outro lado disse: “Ah, senhor Stanley Kubrick? Aqui é Mitsubishi. Em que posso ajudá-lo?”

 

Todo mundo neste planeta conhecia o nome de Stanley Kubrick. Não se podia esperar que um homem desses fosse igual a nós.

 

Então por que “Superbrinquedos” não foi filmado? Porque as pessoas que vieram depois de mim, cada uma delas tentando em vão fazer a coisa funcionar, foram forçadas a viajar ao longo das linhas estabelecidas por ele.

 

Acredito que Kubrick se enganou. Obcecado pelo sucesso estrondoso dos filmes de ficção científica da época, decidiu levar minha penosa cena doméstica para os confins da galáxia. Afinal de contas, tinha feito algo parecido e com grande sucesso com o conto de Clarke.

 

Mas, para começo de conversa, “O sentinela” olha para fora. Fala de um mistério em alguma outra parte, ao passo que “Superbrinquedos” fala de um mistério interior. David sofre porque não sabe que é uma máquina. Esse é o verdadeiro drama; como disse Mary Shelley de seu Frankenstein, “ele fala aos receios misteriosos de nossa natureza”.

 

Uma possibilidade para o filme seria mostrar David enfrentando sua verdadeira natureza. Seria um choque perceber que é uma máquina. David poderia desenvolver um defeito e o pai então o levaria à fábrica, onde mil outros andróides idênticos estão sendo fabricados. Ele se autodestrói? A platéia deve ficar sujeita a um tenso e alarmante drama de claustrofobia, deve ser deixada com as perguntas finais. “Importa de fato que David seja uma máquina? Deveria importar? E até que ponto somos todos máquinas?”

 

Por trás dessa charada metafísica há uma história simples — a história que atraiu Stanley Kubrick —, de um menino que nunca foi capaz de agradar à mãe. Uma história de amor rejeitado.

 

Stanley Kubrick morreu em 1999. O homem-mistério virou notícia. Eu me cansei de gravar entrevistas. Estava tentando escrever um romance. Ocorreu-me reler “Superbrinquedos”. E aí vi que estava contando a mim mesmo o que acontecia em seguida. Trinta anos depois daquele primeiro, escrevi um segundo conto, continuando as aventuras de David e Teddy, o ursinho.

 

Um dia recebi uma visita. Uma visita muito simpática de Jan Harlan, cunhado e sócio de Kubrick. Jan queria que eu figurasse num documentário que estava fazendo sobre a vida de Kubrick. No final da tarde, eu lhe dei o novo conto, “Superbrinquedos quando vem o inverno”.

 

Jan enviou o conto para Steven Spielberg, que herdara todos os projetos inacabados de Kubrick.

 

Nesse meio tempo, eu havia escrito para Spielberg. Na carta, sugeria que David poderia se ver diante de mil réplicas de si mesmo. Ele gostou da idéia e Jan ofereceu-se para comprar a frase contendo a idéia. Claro, quem não ficaria encantado com a possibilidade de vender uma frase, uma única frase? Mas, àquela altura, eu já sabia como o ciclo de David deveria terminar e escrevera um terceiro conto. Os três contos juntos continham os contornos daquilo que eu acho ser necessário a um filme. Nada de Nova York inundada, nada de Fada Azul. Apenas um drama muito intenso e poderoso de amor e inteligência.

 

O conto “Superbrinquedos em outras estações” foi enviado para Jan e Spielberg. Nele estava incluída a frase mágica.

 

Por meio de um arranjo amigável com a Warner Brothers, Spielberg adquiriu todos os três contos.

 

Embora me sinta feliz de ser o único homem a ter vendido contos para dois cineastas magníficos, Kubrick e Spielberg, sei que Spielberg concordou em filmar “Superbrinquedos” — agora intitulado A.I. — da forma como Kubrick planejara fazê-lo.

 

As filmagens começaram em Long Island em junho de 2000. O lançamento do filme foi programado, muito apropriadamente, para 2001.

 

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Ficha Bibliográfica

Título: Superbrinquedos Duram o Verão Todo: e outros contos de um tempo futuro

Autor: Brian Aldiss

Tradução: Beth Vieira

Editora: Companhia das Letras

Ano de publicação: 2001

Edição: 1ª edição

Local de publicação: São Paulo

Número de páginas: 272

ISBN: 9788535901603 / 8535901604

Título original: Supertoys Last All Summer Long