O Canon dos Prefácios em Ficção científica — Machado de Assis e a Ficção científica

 


Machado de Assis e a ficção científica

Por Roberto de Sousa Causo

 

A FICÇÃO CIENTÍFICA brasileira existe desde meados do século XIX. Essa é uma afirmativa que, ao mesmo tempo em que é incontestável, exige explicações e qualificativos, especialmente porque a ocorrência de FC no país é bastante esporádica. O quadro de inconstância se dá, curiosamente, entre os anos de 1857 e 1957, um lapso de cem anos que forma o que chamei de Período Pioneiro da Ficção Científica Brasileira — e de saída admito que cem anos são de fato muito tempo para agrupar uma determinada circunstância literária.

 

Esse período, é claro, possui momentos e situações bastante variadas, mas é justo levantar dois pontos que circunscrevem muito da sua identidade: primeiro, a maior parte daquela produção ficcional aderia aos modelos narrativos e às convenções literárias do século XIX, especialmente o romance de aventura e de capa e espada, o conto de subjetividade romântica, a narrativa de mundo perdido, a sátira social e o panfleto utópico; segundo, a falta do entendimento — crítico ou popular — de tal produção como parte de um gênero literário específico.

 

O segundo aspecto citado começa a se alterar muito rapidamente a partir de 1957, ano em que os cientistas soviéticos puseram o Sputnik em órbita, e quando a ameaça de conflito nuclear entre as superpotências vencedoras da Segunda Guerra Mundial, além do advento de inovações tecnológicas como o computador, o aparelho de televisão, o voo supersônico e o míssil teleguiado entraram na consciência popular. São fatores que aproximam a realidade imediata das ideias da ficção científica. A FC é então redescoberta como um gênero literário com algo a dizer de concreto, profundo e urgente sobre o mundo. Nos Estados Unidos, a grande produção antes dirigida às revistas populares (chamadas de pulp magazines) já havia se decantado em um número de romances e antologias publicadas em livro — edições em capa dura destinadas ao mercado de bibliotecas públicas e clubes do livro; e edições em brochura e formato de bolso, em grandes tiragens, na assim chamada “revolução dos paperbacks” surgida durante a guerra.

 

No Brasil, dois livros lançados em 1958 marcam a “chegada” da FC como gênero no país: a antologia Maravilhas da ficção científica, editada por Fernando Correia da Silva e Wilma Pupo Nogueira Brito, e O homem que viu o disco-voador, um hábil romance de Rubens Teixeira Scavone, ambientado em São Paulo e na Ilha da Trindade. A antologia não trouxe nenhuma história brasileira, mas apresentou uma brilhante e erudita introdução do crítico Mário da Silva Brito, que, por si só, disparou um debate envolvendo a intelectualidade de São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro sobre a relevância ou irrelevância da FC para a literatura e a modernidade. O gongo soou, e no ringue dessa questão literária subiram figuras de peso como Otto Maria Carpeaux, Wilson Martins, Antônio Olinto, Maria de Lourdes Teixeira, João Camilo de Oliveira Torres, Clóvis Garcia, Alcântara Machado, Frederico Branco, Willy Lewin, Fausto Cunha, Laís Corrêa de Araújo, André Carneiro e o editor Gumercindo Rocha Dorea. Algo semelhante só viria a acontecer com os esforços de Luiz Bras (pseudônimo de Nelson de Oliveira) — seguidos ao seu ensaio-manifesto “Convite ao mainstream” (2009) — de aproximar a ficção científica da ficção literária brasileira, mas em menor escala e com menor polêmica.

 

Quase nesse mesmo instante, Gumercindo Rocha Dorea publica a coletânea de histórias Eles herdarão a Terra (1960), de Dinah Silveira de Queiroz, e a Antologia brasileira de ficção científica (1961), editada por si próprio — a primeira antologia de FC brasileira da história da literatura. Os livros saíram na coleção Ficção Científica GRD, que a partir daí abrigou diversos outros autores nacionais: Olinto, Carneiro, Cunha, Zora Seljan, Levy Menezes, Guido Wilmar Sassi, Álvaro Malheiros e o veterano Jerônymo Monteiro — que fundou a Associação Brasileira de Ficção Científica (o primeiro fã-clube de FC do país) e foi o editor do Magazine de Ficção Científica (1970-72), nossa versão da importante revista americana The Magazine of Fantasy & Science Fiction.

 

Seguindo as Edições GRD de Dorea, veio a EdArt, publicando Carneiro, Nilson D. Martello, Walter Martins, Domingos Carvalho da Silva e vários outros. O Clube do Livro também participou desse momento, publicando Scavone e Luiz Armando Braga. A atuação de Dorea foi impactante o suficiente para que Fausto Cunha, então um dos críticos mais relevantes do Brasil, chamasse de “Geração GRD” o elenco de escritores brasileiros que escreveram FC naquela década.

 

Surge aí, entre 1957 e 1972, a Primeira Onda da Ficção Científica Brasileira. Sem dúvida, a ditadura militar (1964-85) teve um papel tanto na descontinuidade da Primeira Onda quanto na reorientação do que seria a tônica da FC nacional na década de 1970. Esse momento seguinte — que pode ser chamado de Ciclo ou Onda de Utopias e Distopias (1972-82) — empurrou os autores da Primeira Onda para o fundo do palco, como as figuras que tiveram uma sobrevida nessa década, Carneiro, Cunha, Queiroz e Scavone. Para a frente veio uma FC que, muitas vezes de maneira alegórica e absurdista, fazia a crítica ao regime militar, à tecnocracia e à impertinência do Estado que tentava gerenciar a sexualidade e os costumes. Foram autores como Ruth Bueno, Mauro Chaves, Chico Buarque, Maria Alice Barroso, Herberto Sales, Márcio Souza e, especialmente, Ignácio de Loyola Brandão, cujo romance Não verás país nenhum (1981) se tornou o marco daquele momento. Essa tendência, porém, dissipou-se com a Abertura e a posterior redemocratização, sublimando-se na literatura pop brasileira e, mais tarde, na ficção autorreflexiva ou metaficcional brasileira.

 

O que veio na década de 1980 foi a Segunda Onda (1982-2015), marcada pelos fanzines e por um número de autores que, ao contrário dos momentos anteriores, eram majoritariamente leitores de FC, cientes de suas convenções e das características como gênero literário. Por isso mesmo, desenvolveram tendências mais variadas, incluindo a FC hard, a história alternativa, a FC feminista, a sociológica e a experimental. Braulio Tavares, Jorge Luiz Calife, Ivan Carlos Regina, Finisia Fideli, Roberto Schima, Simone Saueressig, Ivanir Calado, Guilherme Kujawski, Gerson Lodi-Ribeiro, Fábio Fernandes, Daniel Fresnot, Marien Calixte, João Batista Melo, Miguel Carqueija, Cesar Silva e Carlos Orsi são alguns dos autores do período, que também viu surgir o primeiro movimento literário da FC nacional em torno do “Manifesto antropofágico da ficção científica brasileira” (1988) de Regina, que propunha mais brasilidade e antropofagia cultural.

 

Um núcleo desses autores — Lodi-Ribeiro, Orsi, Silva, Octávio Aragão e o pesquisador Marcello Simão Branco — uniu-se em uma editora cooperativada, a Ano-Luz, e mais tarde formou (com Fernandes, Max Mallmann e outros) o que chamei de Grupo da Renovação. O grupo se tornou influente junto à Terceira Onda da Ficção Científica Brasileira (2004 ao presente), momento em que a FC se aproxima da fantasia e do público jovem e passa por um esforço editorial de atualização de tendências — o cyberpunk e o steampunk, o New Weird e a FC queer, por exemplo. Seus autores propagam a importância da internet em suas posições literárias e se apresentam pela primeira vez como uma novidade no campo, própria do século XXI. Assumem blogs, vlogs e revistas eletrônicas, e advogam a popularização da literatura fantástica, levantando a ficção pulp e a busca direta do público leitor como bandeiras. Entre seus nomes de maior relevo e importância estão Jacques Barcia, Cirilo S. Lemos, Ana Cristina Rodrigues, Tibor Moricz, Flávio Medeiros Jr., Cristina Lasaitis, Enéias Tavares, Christopher Kastensmidt, Mustafá ibn Ali Kanso, Felipe Castilho, Aline Valek e Samir Machado de Machado. Um destaque importante é Luiz Bras, que se volta à FC brasileira nesse momento, impondo uma perspectiva mais literária e experimental.

 

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OS DOIS TEXTOS de Machado de Assis reunidos aqui fazem parte, evidentemente, do Período Pioneiro da FC Brasileira. Rui de Leão foi publicado originalmente em 1872 no Jornal das Famílias, e O imortal dez anos depois, em partes, na revista A Estação.

 

O fato de Machado ter escrito alguma forma de ficção científica — e essa é outra ressalva que se deve fazer sobre o Período Pioneiro — não deve causar estranhamento. Os dois contos em questão, por exemplo, foram precedidos por “O fim do mundo em 1857” (1856), de Joaquim Manuel de Macedo, autor daquele que é considerado o primeiro romance brasileiro, A moreninha (1844). O próprio Macedo retornaria ao fantástico posteriormente, com A luneta mágica (1869). A historiografia da FC brasileira também registra Páginas da história do Brasil, escrita no ano de 2000 (1868-72), de Joaquim Felício dos Santos, e, entre os dois textos de Machado, tem-se o marco da publicação de O doutor Benignus (1875), de Augusto Emilio Zaluar, o melhor candidato, até o momento, a primeiro romance brasileiro de ficção científica. Vinte e poucos anos depois, Emília Freitas publicaria o seu também pioneiro romance feminista de aventura e espiritualismo, A rainha do ignoto (1899). Por fim, o próprio Machado também é autor da fantasia orientalista “As academias de Sião”, que propõe a troca temporária de corpos entre o monarca da antiga Tailândia e uma de suas concubinas.

 

A partir desse primeiro momento, muitos grandes nomes da literatura nacional escreveram algum tipo de FC: Lima Barreto, Monteiro Lobato, Menotti del Picchia, Érico Veríssimo, Rachel de Queiroz e Guimarães Rosa. No caso de Machado, seu posicionamento na linha evolutiva dos movimentos literários é complicada por sua produção variada e prolífica, sinal da disposição de ocupar os espaços literários disponíveis na sua época. José Luiz Passos, autor de Romance com pessoas: a imaginação em Machado de Assis (2007), reconhece: “Há grande ambição num escritor que, na sequência dos primeiros livros, tenta todos os [formatos] que a literatura do seu tempo lhe punha à disposição”.

 

A relação aqui é menos ideária — isto é, obedece menos a um receituário como o do Realismo, por exemplo — e mais de aproveitamento pessoal de práticas literárias em circulação na época, coloridas com a personalidade do escritor. Neste caso, aquilo que viria a compor a nossa imagem do que é a FC como gênero estava, no século XIX, difuso na narrativa de aventura a terras estranhas, ou no conto gótico, ou na sátira social e política. Machado pescou esses e outros elementos, e incidentalmente fez aquilo que nosso olhar retrospectivo identifica como FC. Cabe lembrar que Machado demonstrou em vários contos da década de 1880 o seu interesse por Edgar Allan Poe, autor de gótico americano, pioneiro da literatura de horror e de ficção científica.

 

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RUI DE LEÃO (ou “Ruy de Leão”) abre com o personagem-título, um fidalgo português, vivendo entre os tamoios. A história narra com ironia sua aculturação entre os nativos, com direito a nudez e antropofagia, guiada pelo mui filosófico pajé da aldeia, seu sogro. Moribundo, o pajé lega ao genro um frasco contendo uma poção que traz a imortalidade. Rui hesita em beber, mas mais tarde conhece um padre em missão na área e se nega a batizar o filho que teve com a filha do pajé. Como que reagindo à praga do padre, ele adoece na sequência e recorre à poção.

 

Depois disso ele tem seu vigor redobrado, não envelhece mais e não perece de agressões de outro modo fatais. Vai parar na Europa, onde apavora alguns com sua situação inédita. Aos poucos, é mais a condição de imortal, e menos as peripécias advindas dela, que assume o centro da narrativa.

 

A versão que Machado realizou com O imortal tem estrutura mais sofisticada, com as aventuras de Rui de Leão narradas entre uma espécie de “parêntese”, já que a abertura e a conclusão estão a cargo de um filho do personagem, médico homeopata vivendo no século XIX e narrando os fatos a um grupo de amigos em uma noite chuvosa. É um detalhe que sublinha a inspiração do conto gótico sobre a história machadiana.

 

A ironia tem uma presença mais discreta, assim como o percurso do personagem pela história brasileira e europeia ganha certa sofisticação. Mais do que isso, para a perspectiva da FC, o escritor nos dá um argumento de grande interesse, dada a sua raridade dentro do gênero na época: “A ciência de um século não sabia tudo; outro século vem e passa adiante. Quem sabe se os homens não descobrirão um dia a imortalidade, e se o elixir científico não será esta mesma droga selvática?” Surge aí uma hipótese científica para fundamentar a premissa, mesmo que não problematizada. Além disso, Machado foi presciente ao antever uma iniciativa que se fixa em fins do século XX até o presente, da busca científica na floresta tropical e ao conhecimento dos povos nativos e tradicionais por novos medicamentos e terapêuticas.

 

O tema da imortalidade integra-se igualmente à ficção científica por via da tradição gótica, levando o crítico inglês Brian Stableford a afirmar: “A imortalidade é um dos leitmotifs básicos do pensamento especulativo; o elixir da vida e a fonte da juventude são objetivos hipotéticos das buscas intelectuais e exploratórias clássicas”. Stableford também observa que “uma coisa imediatamente perceptível sobre essa rica tradição literária é que a imortalidade é frequentemente tratada como um falso objetivo, algo como uma maldição” — bem dentro das aflições de Rui de Leão nos dois textos reproduzidos aqui. Por outro lado, a biografia do próprio Machado de Assis nos sugere um outro nível de ironia, já que ele alcançou um tipo de imortalidade, talvez menos vão, ao ser eleito para a Academia Brasileira de Letras — que ajudou a fundar — em 1897.

 

As peripécias de Rui de Leão, por sua vez, estão dentro do leque de aventuras físicas e sentimentais da literatura da época e, em uma análise bastante sofisticada de O imortal, o prof. João Adolfo Hansen, da Universidade de São Paulo, observa que enredo de Machado incorpora os clichês do Romantismo sobre o homem que ascende socialmente e conquista a mulher aristocrática, ou que se envolve em revoltas libertárias e combate invasores ou indígenas, de modo que seu agrupamento em uma única narrativa — e vividos por um único personagem, como um Forrest Gump do século XVII [1] — formaria uma crítica irônica aos excessos daquele movimento. Algo, inclusive, que Machado fez em vários outros momentos, como nos contos “Aurora sem dia” e “A chinela turca”.

 

Não obstante essa hipótese de uma postura satírica, os contos não deixam de pertencer à ficção científica. Assim como o autor da sátira política não deixa de pertencer à sociedade ou ao país que ele ou ela satirizam.

 

A Plutão presta um grande serviço ao pesquisador e ao leitor de FC ao disponibilizar esta edição com as duas histórias lado a lado. Certamente, a ficção científica no Brasil é um gênero importante e rico demais para que suas obras de interesse caiam no esquecimento.

 

Roberto de Sousa Causo

São Paulo, maio de 2018


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Ficha Bibliográfica do Livro

Título: Sobre a Imortalidade de Rui de Leão

Autor: Machado de Assis

Editora: Plutão Livros

Ano de publicação: 2019 (edição mais recente disponível)

Páginas: 76

Descrição: Este livro reúne dois contos escritos por Machado de Assis no século XIX: "O imortal" (1872) e "Rui de Leão" (1882), ambos explorando o tema da imortalidade a partir da trajetória fantástica de Rui de Leão, um europeu que se casa com uma indígena no Brasil do século XVII e recebe de um pajé o segredo da vida eterna. Os textos refletem sobre a passagem do tempo, perdas, conquistas históricas e o tédio vinculados à existência imortal.

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