Nota do autor
A lenda de que me libertei dos bairros de lata da ficção pulp para me estabelecer nos melhores subúrbios literários reflecte, desconfio, atitudes culturais convencionais mais do que revela algo sobre a minha carreira como escritor. Nunca senti necessidade de reconciliar o meu gosto por rock and roll com a paixão por Schönberg ou pedir desculpas pelo meu entusiasmo em relação a toda a ficção popular e literária de alta qualidade. Se o prazer que encontro em Harrison Ainsworth não tem a mesma profundidade do que encontro em George Meredith, talvez tenha a ver com o facto de, no seu melhor, Meredith ter sido o maior de todos os romancistas do século XIX. Mas Meredith não sabia contar uma história de salteadores da estrada com a mesma emoção que Ainsworth, e só raramente exibia o mesmo à-vontade bem-disposto com que Ainsworth incluía uma ou duas canções das que ficam no ouvido se a narrativa parecia esmorecer.
Cresci num mundo em que as artes populares desenvolviam enorme potencial — em especial as derivadas do rock and roll e da ficção científica. Estas eram as formas de arte da moda para a geração que cultivava a ironia como se de uma superdroga se tratasse — que glorificava Andy Warhol e os artistas pop, o boom da sátira e os protestos sociais das massas, os Beatles, Jimi Hendrix, The Who, Pink Floyd, The Grateful Dead, Captain Beefheart, 2001, Dark Star, The Rocky Horror Show, legislações progressistas para a defesa dos direitos civis, jornalismo gonzo, feminismo radical, o movimento Black Power, o triunfo do activismo anti-censura, um renascimento do teatro, dança e outras artes de palco, recitais de poesia em locais como o Albert Hall, e uma vasta explosão de experiências numa busca constante por novos patamares de ambição e execução. Os artistas, frustrados pelos meios de expressão ortodoxos do seu tempo, e que já não descreviam a sua experiência, tinham começado a procurar inspiração e métodos nas imagens e vocabulários, e também nas técnicas, de formas populares.
A ortodoxia, por natureza, tende a acreditar, às vezes agressivamente, que o melhor já foi atingido. Gera um clima artístico que é, ao mesmo tempo, ameaçador e sufocante. Na América, durante a década de 1950, a ortodoxia gerou um clima político que foi o mais cruel e repressivo do mundo democrático do pós-guerra, e que efectivamente silenciou toda uma geração do opositores bem intencionados. Na Inglaterra, reconhecidamente sob um governo progressista, continuámos a ter uma austeridade e uma economia de guerra que se prestavam a deturpar atitudes. Para escapar a este clima, crianças impetuosas como eu procuravam a salvação no rock e na ficção científica. Creio termo-la encontrado e creio termos também salvo o romance inglês. Um olhar pela ficção literária mais bem sucedida de hoje revela muitas vezes a nítida influência das idéias e técnicas das quais fomos pioneiros há trinta anos com a New Worlds.
Tendo conseguido introduzir no mundo uma boa dose de justiça e equidade, a minha geração da contra-cultura também não fez má figura na música. A um nível prático apenas, a Rex Corporation dos Grateful Dead financia, sozinha, mais compositores sérios e talentosos do que a maior parte dos governos ou instituições privadas, e o apoio diligente que Paul McCartney dá a todos os tipos de música, em especial à clássica, é bem conhecido. Pete Townsend tornou-se administrador da editora literária Fáber and Fáber e participa activamente em programas de mecenato para jovens artistas, em especial músicos. Há muitos outros exemplos. Quem sobreviveu à década de 1960 com parte da cabeça e das finanças intactas continua a perfilhar, talvez de forma um tanto mais eficiente e selectiva, o princípio de que toda a arte deve ser popular e que alguma outra, menos familiar para um público mais vasto, necessita de uma certa dose de exposição e apoio. Também costumávamos defender que, uma vez que apreciávamos um leque tão diverso de ficção, pintura e música, não havia motivo para o nosso trabalho não reflectir essa diversidade.
Eis o Homem foi idealizado à mesa da cozinha numa cave em Ladbroke Grove na Páscoa de 1966, enquanto alguns de nós discutíamos a natureza dos demagogos e até que ponto as suas carreiras eram movidas pela própria ambição, e pela ânsia das multidões que lhes haviam concedido o poder.
***
Embora tivesse recebido fortes influências de Michael Hall, a escola do Sussex gerida de acordo com os idiossincráticos princípios cristãos de Rudolf Steiner, não tive qualquer educação religiosa convencional ou instrução formal que valha a pena referir. Fui criado num lar predominantemente laico, não muito diferente de qualquer outro naquela zona do sul de Londres onde cresci. Não me lembro sequer de conhecer alguém que fosse à igreja, e os meus amigos e eu tínhamos uma tendência para acreditar que os rapazes que se juntavam aos Escuteiros, ou a semelhantes organizações da igreja, como a Boys Brigade, eram palermas risíveis. O meu amigo Brian Alford e eu tínhamos uma bela colecção de chapéus das suas fardas. Nada nos dava mais satisfação do que ver um grupo da Brigade marchar com estrépito, de cabeças descobertas, impotente para nos perseguir enquanto nós, sardónicos, lhe fazíamos continência da beira da estrada. Admito também, com alguma vergonha, que as igrejas mereciam a nossa maior atenção apenas enquanto havia chumbo para roubar dos telhados ou quando uma bombinha de mau cheiro era atirada por uma janela aberta.
***
Crescemos nas ruínas. Éramos recuperadores habituais. Adorávamos as paisagens que percorríamos, a revelar constantemente prémios e o potencial para a aventura. Tive uma infância de modo geral feliz e nem sempre amoral influenciada pela ficção que lia. Aqui se incluíam Edgar Rice Burroughs, Louisa May Alcott, P. G. Wodehouse, Dickens, Shaw, E. Nesbit, Scott, Dante, Aldous Huxley, Peake, Richmal Crompton, Charles Hamilton, Karl May, Sinclair Lewis, Steinbeck, W. W. Jacobs, Carnus, Henry Treece, Dylan Thomas e Shakespeare. Incluía ainda uma quantidade imensa de revistas de ficção publicadas antes da 2.a Guerra Mundial, em especial a obra de Anthony Skene, cujas aventuras terminaram com o Blitz. Sexton Blake era o herói detective de milhares de histórias escritas por várias pessoas a partir da década de 1890. Sempre que possível, lia pulps americanas, como a Startling Stories e a Jungle Stories, e descobri ainda exemplares da Weird Tales, que me iniciaram em Robert E. Howard, C. L. Moore, Seabury Quinn e Clark Ashton Smith (nunca fui capaz de ler H. P. Lovecraft sem uma boa dose de horrorizada galhofa). Quanto aos romances da minha mãe, ia de bicicleta a biblioteca privada mais próxima para os alugar (ainda havia bastantes na altura, a dois dinheiros por volume por semana) e levava-lhe seis dinheiros em livros de cada vez, enquanto eu ia lendo as séries populares da altura — Sax Rohmer, Edgar Wallace, Dornford Yates, Max Brand, Zane Grey, Clarence E. Mulford e demais. A medida que fui crescendo e me tomei mais exigente, comecei a passar mais tempo na biblioteca pública reconstruída, que ficava a dois minutos de casa. A minha educação literária inicial veio do bibliotecário, que me recomendava os clássicos, de Austen a Hugo. Lia tão depressa e com tanto entusiasmo que havia adultos a recomendar-me os seus favoritos — de Alexandre Dumas a Samuel Beckett, de Elizabeth Bowen a James Joyce. Os meus gostos eram amplos. Lia poesia e filosofia, muitas vezes sem compreender a maior parte. Durante muito tempo, preferi humor e fantasia. Quando os dois se combinavam num único livro, como em Dunsany, Peake, Cabell, Leiber, De Camp, Thorne Smith ou Anthony Boucher, era uma delícia. Embora não fosse uma criança particularmente solitária, gostava de andar sozinho, e não há lugar mais seguro para alguém se perder num livro, com uma maçã e uma garrafa de gasosa, do que num quarto secreto e semienterrado nos escombros de uma mansão bombardeada!
Há elementos profundamente autobiográficos em Eis o Homem. São, de modo geral, os poucos episódios infelizes de uma infância bem gozada e em que tive muito mais liberdade do que a maior parte das crianças modernas. Alguns destes elementos voltaram a surgir nas cenas com David Mummery em Mother London, e também no segundo romance com Glogauer, Breakfast in the Ruins, e têm a ver principalmente com as relações mãe-filho. A minha mãe era uma pessoa complexa, de uma família de mulheres muito poderosas. O seu feitio podia parecer um tornado a bater de frente, mas ela empregava-o quase sempre a pensar em mim. Quando me defendia, por exemplo, do polícia aterrorizado que recuava pelo caminho de casa com as mãos levantadas num gesto apaziguador, já ela tinha gasto a maior parte da sua energia, restando só uma dose moderada (o equivalente a um pequeno ataque aéreo, suponhamos) para discutir a questão da minha culpa e/ou castigo. Independentemente do que isso possa fazer a alguém, proporciona uma firme base psicológica e um arsenal emocional capaz de derrotar continentes.
Só há relativamente pouco tempo me apercebi que as figuras paternas são raras (e estão muitas vezes ausentes) na minha obra. Fui criado pela minha mãe e fiz parte de uma geração que viu muitos milhões de pais mortos ou encarcerados, daí nunca me terem feito realmente falta. A minha experiência era corriqueira. Dos meus amigos mais chegados, só um tinha o pai em casa (e mesmo este não era grande crédito para a espécie). Pessoalmente, convenci-me de que um pai é muitas vezes um risco para a família e estou certo de que os meus filhos concordariam comigo.
A busca espiritual de Karl Glogauer, embora tratando-se de uma questão muito mais dramática e intensa, reflecte em parte os meus sentimentos durante a adolescência e deixa entrever o meu próprio desenvolvimento espiritual, para além da minha curiosidade permanente em relação às religiões judaico-cristãs. Poucos anos antes de escrever Eis o Homem, procurei obter experiência directa das várias crenças à minha disposição. Assisti a toda uma panóplia de serviços religiosos. The Perennial Philosophy de Aldous Huxley teve um efeito tremendo em mim, bem como The White Goddess de Robert Graves e O Martírio do Homem de Winwood Reade. Estes, juntamente com a História Universal de H. G. Wells, as peças de Shaw e um «guia» de bolso sobre Kant, foram o fundamento da minha autodidáctica. Tive também a sorte de fazer amigos entre académicos brilhantes que me apresentaram idéias mais complexas.
Enquanto ponderava as notas que tinha para a história, fiz também uma leitura aprofundada do Novo Testamento. Li-o três vezes do princípio ao fim, e a ele voltei à medida que a história começava a ganhar forma.
Eis o Homem foi escrito para a New Worlds numa altura em que, no que aos princípios orientadores dizia respeito, a revista começava a entrar no seu ritmo normal. Esse número continha uma reflexão irónica sobre a bomba de Hiroshima por Brian Aldiss, Another Little Boy, The Atrocity Exhibition de J. G. Ballard, Invaded by Love de Thomas M. Disch, A Taste of the Afterlife de Charles Platt e Barry Bayley e várias outras coisas boas. Procurando evitar as reclamações habituais que naqueles tempos seguiam as minhas políticas, escrevi de forma um pouco pia no meu editorial que queria os meus contos julgados pelas suas qualidades, e não como contos «inovadores» ou escritos para chocar. «A sua intenção é séria, e tratam de assuntos de profunda importância para os autores. Tentam lidar com o trabalho de analisar e interpretar vários aspectos da existência humana, e esperam ao mesmo tempo divertir o leitor.»
Quando a história foi alargada para publicação em livro (continuo a achar que esta versão mais curta é a melhor), recebeu, na maior parte, muito boas críticas da imprensa religiosa, em especial a judia e a católica, e a maioria das pessoas concordou que estava a examinar, e não a atacar, o etos cristão. Alguns críticos viram na história uma mensagem espiritual. Só quando foi publicada na América é que comecei a receber ameaças de morte, a maior parte do chamado Bible Belt, quase todas do Texas, e que eram praticamente idênticas em espírito àquelas que Rushdie recebeu do mesmo tipo de gente que discordou de Os Versículos Satânicos (e que não ofendeu nenhum dos meus amigos muçulmanos), algo que me surpreendeu. Vivemos numa era em que as pessoas se agarram aos destroços das suas ortodoxias afundadas como se fossem a salvação, e continuam, de maneira agressiva, a promover as mesmas idéias que as levaram à sua desagradável situação. Só podemos esperar, suponho, que, no seu entusiasmo pela autodestruição, não nos arrastem a nós para o fundo. Sorrisos violentos, música de orquestra enlatada, boas vizinhanças forçadas, vigoroso aplauso, apresentações arrebatadoras como no mundo dos espectáculos, e hinos simplificados não substituem a verdadeira substância espiritual e, parece-me, demonstram a crise de muitas igrejas cristãs da actualidade. Muita arte popular cresceu da Igreja, e muitas belas artes foram inspiradas e patrocinadas pela Igreja. A Igreja, quer me parecer, tem mais êxito e é consideravelmente mais saudável como inovadora e mecenas do que como imitadora e censora.
***
Cresci num mundo violento, num país que lutava pela vida contra um inimigo monstruoso. Esse inimigo tinha já corrompido as próprias igrejas e fizera das mais conservadoras — independentemente da denominação — suas aliadas. Em nome do conservadorismo (e não do fascismo ou do nazismo), começara por cooptar o próprio Papa, bem como outros eminentes líderes religiosos, nos seus planos. Contou com fervorosos apoiantes entre as personalidades religiosas da rádio americana, que faziam eco dos receios e preconceitos dos conservadores religiosos, à semelhança do que Pat Buchanan faz nos dias de hoje.
Usando retórica assustadoramente parecida com o que se ouve nos dias de hoje, estas personalidades da rádio, demagogos irresponsáveis com enormes audiências populares, emergiram dos horrores consequentes da era nazi, que tinham ajudado a criar, de consciência tranquila apenas porque nunca estiveram perto de imitar Cristo, em nome do qual falavam.
Até onde a religião organizada cooperou com o fascismo é, na minha opinião, um assunto importante mas geralmente evitado, um indicador importante da crise actual da Igreja.
As igrejas cristãs nunca tentaram de facto examinar o seu envolvimento no holocausto, até onde conspiraram com os nazis ou deixaram de lhes resistir quando estes surgiram. A realidade é que a religião ortodoxa foi, de modo geral, atraída por estas idéias e encontrou esperança nas promessas de Mussolini ou de Hitler precisamente porque ofereciam resistência à mudança, precisamente porque usavam a retórica absurda, sentimental e, em última análise, profundamente cruel da reacção. O número considerável de homens e mulheres cristãs que morreram, muitas vezes numa agonia e medo consternadores, por seguirem as suas consciências cristãs, morreram, quer-me parecer, numa imitação de Cristo e assim reforçaram a fé de quem os seguia. Mas as igrejas organizadas raramente ofereciam genuína resistência.
Tanto Mussolini como Hitler tomaram as rédeas de nações com constituições democráticas quase perfeitas a separar a Igreja do Estado. Rasgaram essas constituições e uniram Igreja e Estado, e por isso receberam louvores consideráveis dos líderes cristãos.
Como crente apaixonado nos princípios da nossa democracia comum, não posso deixar de lamentar o facto de que os EUA são, actualmente, o estado moderno mais explorado, mal informado e ignorante de todos os seus pares democráticos. Notoriamente, tem os piores serviços noticiosos. Pessoas mal informadas são manipuladas e convencidas a agir contra os seus próprios interesses. Poucos americanos modernos conhecem a própria História ou os princípios do robusto sistema político da sua nação. Houve boa razão para os líderes da revolução americana, entusiasmados pelas idéias do Iluminismo, introduzirem esses princípios na Constituição. Esses radicais americanos foram os mais nobres sucessores dos políticos progressistas britânicos (muitos dos quais apoiavam a Revolução Americana) que já tinham feito do seu país um dos mais democráticos do mundo. Estavam conscientes da universalidade do apoio e manutenção de autoridades corruptas endémica à unificação da Igreja e do Estado, e o quanto isso contribuíra para a injustiça e para a tirania na Europa. Estavam determinados a não deixar que esse fenómeno particular se instalasse no Novo Mundo e, na sua eloquente Carta de Direitos, instauraram um princípio destinado a impedi-lo. É quiçá irónico que a Igreja e o Estado nunca tenham estado tão perto na América moderna e que o poder repressivo da Igreja seja agora exactamente aquilo que os fundadores do país tinham procurado evitar. O corporativismo multinacional moderno pode muito bem ter desafiado esses princípios, mas, apesar da fúria com que tem atacado os últimos bastiões do nosso poder público, ainda não levou a sua avante.
***
Na Grã-Bretanha, a Igreja tem frequentemente uma voz activa e bem publicitada nas suas críticas à desumanidade dos grandes negócios e à hipocrisia do governo. Fala predominantemente pelas pessoas vulgares, pelos ideais cristãos da tolerância e da igualdade, e age muitas vezes como oposição espiritual às autoridades temporais. Ironicamente, e embora não esteja separada do Estado, critica mais as autoridades instituídas do que, por exemplo, as igrejas evangélicas dos EUA. Também irónico é o facto de as igrejas evangélicas britânicas conservarem muitas vezes as suas tradições radicais dissidentes que produziram muitos dos melhores políticos de esquerda na política do pós-guerra. De igual modo, na África e na América do Sul, os sacerdotes estão entre os mais corajosos opositores da tirania e da ortodoxia. Em muitas outras partes do mundo, há cristãos que arriscam frequentemente as vidas e tudo o que prezam para se dedicarem aos seus ideais. Os serviços de rádio da BBC que escuto enchem-se de advertências para o dever cristão de praticar resolutamente as boas acções, de fazer das palavras religiosas actos espirituais. Os aspectos consoladores desta religião não se encontram isolados dos actos. São intrínsecos. Diria que imitar Cristo é o mais importante acto de fé que um cristão pode executar. Ao rejeitar a ignorância e o preconceito a favor da educação e da tolerância, temos hipótese de alcançar o paraíso ou, no mínimo, a nossa própria harmonia moral e espiritual, que decerto será a nossa maior arma contra os efeitos da cupidez humana, contra os poderes do Caos e da Noite Velha...
A busca de Karl Glogauer pela harmonia é uma busca dramática. A pouca maquinaria científico-ficcional que existe na história foi deliberadamente justificada pelo uso das suas imagens temáticas, do seu simbolismo. Preocupei-me para que o conto não fosse visto predominantemente como «uma história de viagens no tempo para quebrar tabus», mas como uma análise de certos temas. A semelhança da máquina do tempo com um útero não é coincidência. A esse respeito, calculo que se possa dizer que Karl Glogauer é um cristão renascido. A sua viagem atormentada, de Belém ao Gólgota, condu-lo ao derradeiro acto de fé de muitos mártires cristãos, que filosoficamente torna possível a existência de Cristo, independentemente do que possam sugerir as provas escritas.
Para mim, tanto faz se a Bíblia é um registo histórico ou poético. Tenho o Novo Testamento na requintada versão de Tyndale — versão na qual a nossa Bíblia Rei Jaime foi em grande parte baseada — e esta continua a ser uma inspiração. Ao lê-la, não se pode deixar de pensar como Tyndale, impelido pelo desejo de levar a palavra de Deus ao povo, acabou condenado à fogueira pela sua própria Igreja por tê-la produzido. Temiam que pusesse em causa a sua autoridade.
É interessante também notar que a mesmíssima Bíblia é hoje usada por autoridades religiosas resolvidas a punir aqueles que, entre nós, continuam a examinar as nossas consciências e tentam seguir os princípios da fé, mas sem qualquer desejo de aceitar as limitações autodestrutivas da ortodoxia.
A derradeira ironia, claro, é que Cristo em pessoa descreveu o processo. Quiçá a única grande diferença entre a sua época e a nossa seja que, nos dias que correm, os vendilhões das empresas, apesar de serem com frequência a voz predominante nos templos, se tornaram mais astutos nos seus disfarces. Hoje em dia, suspeita-se que arrendem discretamente esses mesmos templos. Numa sociedade que já marcha, aos berros, a caminho do Caos, a voz do autoritarismo religioso não é a voz da salvação. O dinheiro não tem moral. O monetarismo é imoral por natureza. Quando a religião é cooptada para porta-voz do corporativismo internacional, desesperado por se expandir para o sector público (i.e., o nosso território) e aumentar os seus lucros à custa do nosso poder democrático, está na verdade a atacar os próprios valores que finge proteger.
Ao sofrer as hipocrisias da religião organizada, Karl Glogauer não rejeita a religião em si. Ao procurar confirmação da existência de Cristo, tenta desesperadamente fazer o que, creio, muitos de nós fazemos quando procuramos conciliar as nossas necessidades espirituais com os ditames das denominações instituídas. Estes compromissos são necessários na política partidária, onde, para se ser eficiente, é preciso trabalhar com outros de idéias e necessidades mais ou menos semelhantes. Contudo, estes compromissos são, na minha óptica, a antítese da religião.
Em nenhuma parte desta história tive a intenção de chocar ou transtornar alguém. Estava a analisar uma idéia. Tal como entendia o cristianismo, esta era uma análise perfeitamente aceitável e até reverente. Não tinha ainda percebido, naquela altura, que embora muitos falassem de religião, o que queriam realmente dizer era fanatismo político. Julgava estar a participar num debate contínuo. Foi a ferocidade homicida dos meus correspondentes que me fez finalmente perceber que tinha cometido um crime capital...
A todos os que me escreveram a oferecer a opinião de que devia ser morto ou, tirando isso, duramente castigado por escrever a história, reembolsei o valor de compra do seu exemplar, mais a franquia. Sempre me pareceu a melhor maneira detratar os fregueses descontentes. Esse princípio, todavia, não se aplica às edições limitadas mais dispendiosas...
A primeira edição do livro não foi publicada em Inglaterra como ficção científica. Recebeu críticas simpáticas da imprensa literária e religiosa, e também foi bem aceite na comunidade da fc. Apareceu no mesmo ano que The Mad God's Amulet, The Runestaff, A Escuna Que Veio do Gelo, The Black Corridor e The Final Programme, todos com níveis muito diferentes de ambição. A sua disparidade confundiu algumas pessoas. Se, hoje em dia, as continua a confundir, talvez seja o melhor por que posso esperar.
Se há coisa que que tenho pena é que Mai Zetterling, a actriz, romancista e realizadora, nunca tenha tido oportunidade de filmar esta história. Tinha imensa vontade de o fazer, e creio que ela e o seu marido da altura, David Hughes, teriam melhorado consideravelmente o original. Infelizmente, não conseguiu encontrar uma produtora que não fizesse exigências descabidas para mudar a história ou as suas técnicas, pelo que o projecto acabou na gaveta. Foi uma mulher talentosa, com um grande coração, e de quem tenho muitas e felizes recordações, pelo que dedico esta edição à sua memória.
Michael Moorcock,
Lost Pines, Texas,
Janeiro de 1996
***
Retirado do livro: Eis o Homem
Tradução de Luís Rodrigues
Nenhum comentário:
Postar um comentário