Prefácio para Fahrenheit 451 de Ray Bradbury
Em 1933, quando os nazistas
queimaram em praça pública livros de escritores e intelectuais como Marx,
Kafka, Thomas Mann, Albert Einstein e Freud, o criador da psicanálise fez o
seguinte comentário a seu amigo Ernest Jones: “Que progressos estamos fazendo.
Na Idade Média, teriam queimado a mim; hoje em dia, eles se contentam em
queimar meus livros”.
Deixando de lado o fato de que a
ironia de Freud logo se tornaria ingênua diante dos fornos crematórios de
Auschwitz e Dachau, podemos nos perguntar: o que aconteceria se os livros
fossem incinerados, varridos da face da Terra até o ponto em que o único
vestígio de milênios de tradição humanista estivesse alojada na memória de
alguns poucos sobreviventes? Qual seria o próximo passo da barbárie? Queimar os
próprios homens, para apagar de vez a memória dos livros?
É essa a pergunta que reverbera
na mente no leitor após a leitura de Fahrenheit 451, de Ray Bradbury. Pois esse
romance visionário — cuja justa celebridade foi amplificada pela repercussão do
filme homônimo de François Truffaut (com Oskar Werner e Julie Christie nos
papéis principais) — trata justamente de uma sociedade em que os livros foram
proscritos, em que o simples fato de manter obras literárias ou filosóficas em
casa constitui-se num crime.
Fahrenheit 451 foi publicado em
1953, mas sua ação se passa num futuro não muito distante dessa época. Em uma
passagem do livro, aliás, uma personagem comenta: “Desde 1990, já fizemos e vencemos
duas guerras atômicas!” — o que leva o leitor a deduzir que o futuro de
Bradbury corresponde mais ou menos ao nosso presente.
O enredo é ambientado numa
cidade dos eua, mas não há nada de futurista em sua paisagem; não há grandes
aparatos tecnológicos ou aquela assepsia que costuma cercar as narrativas
localizadas num porvir em que a ciência transformou o habitat humano num grande
laboratório. A cidade de Fahrenheit 451, em resumo, é apenas um pouco mais
sombria e opressiva do que a maioria das metrópoles contemporâneas, com seu
misto de progresso industrial e deterioração do tecido urbano, onde
moderníssimos meios de transporte atravessam bairros decadentes.
Há, porém, uma grande diferença
em relação às nossas cidades: as casas de Fahrenheit 451 são à prova de
combustão. Por isso, os bombeiros desempenham agora uma nova função: em lugar
de apagar incêndios, sua tarefa é atear fogo. Os bombeiros de Bradbury são
agentes da higiene pública que queimam livros para evitar que suas quimeras
perturbem o sono dos cidadãos honestos, cujas inquietações são cotidianamente
sufocadas por doses maciças de comprimidos narcotizantes e pela onipresença da
televisão.
Esse dado inverossímil, que
imanta a sociedade fictícia de Fahrenheit 451, faz com que o relato de Bradbury
seja incluído na categoria das “distopias”. Em geral associadas à “ficção
científica”, as distopias são “a descrição de um lugar fora da história, em que
tensões sociais e de classe estão aplacadas por meio da violência ou do
controle social” — segundo as palavras de Roberto de Sousa Causo (um importante
estudioso do assunto e escritor de ficção científica). Como o próprio nome diz,
a distopia é o contrário da utopia, ou uma “utopia negativa” — e vale a pena
refletir um pouco sobre esse gênero, tão peculiar ao nosso tempo, antes de
avaliar a importância de Fahrenheit 451.
As utopias surgiram como uma
imagem invertida do real, como uma espécie de contrapartida positiva da razão
crítica: se uma das atitudes filosóficas mais persistentes ao longo do tempo é
o antidogmatismo e a denúncia de uma sociedade construída sobre um sistema de
mistificações (o mito, a religião, a ideologia), a utopia seria o mundo
possível a partir do momento em que todas essas crenças tivessem sido
superadas.
Ressalta daí uma das
características das utopias: elas parecem irreais porque são racionais em
excesso, porque contrastam com a irracionalidade reinante nas relações sociais.
A cidade do sol de Campanella, o Eldorado de Thomas More (autor de Utopia ou
sobre o ótimo estado da república e sobre a nova Ilha Utopia) e o “falanstério”
de Fourier criam em termos meramente hipotéticos uma idade de ouro do
racionalismo. As utopias são constituídas por nações idílicas, em que homens
solidários e justos mantêm relações de cordialidade em meio a uma natureza
dadivosa e domesticada, que serve de celeiro e jardim da humanidade. As utopias
são, por assim dizer, o sonho da razão, além de uma vulgarização do humanismo —
e por isso as grandes utopias ocidentais estão compreendidas entre o renascimento
e o fim do século XIX.
Num século anti-humanista como o
que acabamos de atravessar, porém, a razão deixou de ser o antípoda da
desrazão, da mitologia e da religião, para se tornar, ela mesma, um
desdobramento dessa fúria dominadora. “O esclarecimento, ou seja, a razão
instrumental, é a radicalização da angústia mítica”, escreveram Adorno e
Horkheimer — e a imaginação literária do século XX foi pródiga em criar
sociedades fictícias em que a racionalidade se transforma num fim em si mesma:
abstrata, mecanicista, reduzindo o existente a um utensílio, alienando a
consciência na linha de montagem e produzindo massacres com planejamento
industrial. No século XX, como na famosa gravura de Goya, o sonho da razão
produz monstros. Ou, em outras palavras, distopias.
Os universos opressivos
descritos em romances distópicos como Nós, de Ievguêni Zamiátin (também
publicado no Brasil sob o título A muralha verde), Admirável mundo novo, de
Aldous Huxley, ou A revolução dos bichos e 1984, de George Orwell, seriam assim
os antecedentes imediatos de Fahrenheit 451. A exemplo desses livros,
encontramos em Bradbury uma sociedade policialesca, com propensões
totalitárias, em que a individualidade é sacrificada a razões de Estado. Em
certo sentido, porém, Fahrenheit 451 é bem mais realista — e isso não apenas no
sentido da representação naturalista (o livro é muito menos rico em invenções
de um mundo alternativo do que seus precursores), mas na estranha
verossimilhança que esse livro adquiriu cinquenta anos após sua publicação.
A trama de Fahrenheit 451 é
bastante simples e apresenta vários pontos de contato com as obras de Huxley e
Orwell. O romance conta a história de Guy Montag, um bombeiro que, após várias
incinerações de livros, começa a se perguntar sobre o fascínio que essas
páginas impressas exercem sobre algumas pessoas obstinadas, que desafiam a
ordem estabelecida pelo simples prazer de ler. Dois fatos são decisivos na
urdidura do romance. Numa ação dos bombeiros, ele testemunha a autoimolação de
uma senhora (cujo sugestivo nome de família é Blake) que se recusa a abandonar
sua casa, preferindo morrer no incêndio de sua biblioteca pessoal.
Paralelamente, Montag conhece Clarisse McClellan, uma jovem adolescente que
instila nele o prazer de coisas simples e espontâneas – como a conversa entre
amigos (coibida numa sociedade que administra o ócio por meio de atividades
programadas) e a indagação sobre “o porquê” das coisas (uma excrescência no
mundo utilitário de Fahrenheit 451, onde só importa “o como” de vivências protocolares).
Esses dois acontecimentos têm
como pano de fundo o cotidiano asfixiante das demais personagens. Assim como em
Admirável mundo novo (em que existe um narcótico, o soma, que provoca um
bem-estar politicamente anestesiante), em Fahrenheit 451 a mulher de Montag,
Mildred, vive à base de pílulas que embalam sua irrealidade cotidiana. E, como
em 1984 (no qual a privacidade era devassada pela onipresença do Grande Irmão),
as casas têm murais televisivos que transmitem ininterruptamente “novelas” com
as quais os moradores podem interagir. A partir daí, toda a ação de Fahrenheit
451 vai se desenrolar no desafio de Montag às proibições vigentes e na sua
tentativa de fuga da cidade, proporcionada pela amizade com Faber — um
professor que ele outrora investigara e que agora se torna seu cúmplice.
O que interessa aqui, porém, é
frisar a singularidade da distopia de Bradbury. Pois enquanto Huxley e Orwell
escreveram seus livros sob o impacto dos regimes totalitários (nazismo e
stalinismo), Bradbury percebe o nascimento de uma forma mais sutil de
totalitarismo: a indústria cultural, a sociedade de consumo e seu corolário
ético — a moral do senso comum.
A ideia de que existe uma
ditadura da maioria, que pune o diverso, aparece em vários momentos do romance,
quase sempre personificado em Beatty, o chefe dos bombeiros. No momento em que
está prestes a incendiar os livros da senhora Blake, por exemplo, ele diz: “Não
há o menor acordo entre esses livros. Você ficou trancada aqui durante anos com
essa malfadada Torre de Babel. Saia dessa situação! As pessoas nesses livros
nunca existiram”. Essa intolerância diante do que é complexo, do que é
desviante, do que é problemático ou contraditório perpassa a narrativa de
Bradbury e corresponde a uma antiga desconfiança em relação ao ficcional, ao
poder desestabilizador da literatura e do imaginário. (Diga-se, entre
parênteses, que Fahrenheit 451 poderia ilustrar perfeitamente a ideia do
‘’controle do imaginário’’ desenvolvida por um ensaísta como Luiz Costa Lima,
que em diversas obras — Vida e mímesis, Limites da voz e Mímesis: desafio ao
pensamento — descreve o processo pelo qual a literatura foi constituída,
enquanto discurso autônomo, como um espaço circunscrito e limitado do
imaginário social e individual, de modo a subordinar o ficcional — e sua
criticidade implícita – aos discursos dominantes da religião, da filosofia ou
da ciência.)
Beatty é a personagem mais fascinante
de Fahrenheit 451. Como chefe dos bombeiros, ele desempenha o papel de
inquisidor-mor; ao mesmo tempo, conhece profundamente aquilo que quer esmagar,
sendo capaz de citar Shakespeare de cabeça. Não seria exagerado fazer um
paralelo entre essa figura contraditória e o Grande Inquisidor de Os irmãos
Karamazov. No romance de Dostoiévski, Cristo retorna à Terra e é preso pela
igreja católica espanhola porque, segundo o Grande Inquisidor, sua mensagem de
liberdade seria insuportável para o homem. Da mesma maneira, o chefe dos
bombeiros procura mostrar ao hesitante Montag que os livros são “o caminho da
melancolia”, da incerteza. Os livros, enfim, são um convite à transcendência,
ao desvario, à errância, ao desvio em relação ao destino bovino da humanidade
conformada. “Sempre se teme o que não é familiar”, diz Beatty — e conclui: “Um
livro é uma arma carregada na casa vizinha”.
E é justamente aí que surge o
aspecto mais inquietante de Fahrenheit 451. Bradbury não imaginou um país de
analfabetos, mas diagnosticou um mundo em que a escrita foi reduzida a um papel
meramente instrumental e no qual a literatura e a arte têm função “culinária”
(segundo a expressão de Adorno). As personagens sabem ler, mas só querem ler a
programação de suas televisões ou o manual técnico que lhes permitirá ter
acesso a um entretenimento que preenche seu vazio — como está magistralmente
sintetizado por essa fala de Beatty:
“Todo homem capaz de desmontar
um telão de tevê e montá-lo novamente, e a maioria consegue, hoje em dia está mais
feliz do que qualquer homem que tenta usar a régua de cálculo, medir e comparar
o universo, que simplesmente não será medido ou comparado sem que o homem se
sinta bestial e solitário. Eu sei porque já tentei. Para o inferno com isso!
Portanto, que venham seus clubes e festas, seus acrobatas e mágicos, seus
heróis, carros a jato, motogiroplanos, seu sexo e heroína, tudo o que tenha a
ver com reflexo condicionado. Se a peça for ruim, se o filme não disser nada,
estimulem-me com o teremim, com muito barulho. Pensarei que estou reagindo à
peça, quando se trata apenas de uma reação tátil à vibração. Mas não me
importo. Tudo o que peço é um passatempo sólido”.
É difícil avaliar o quanto essa
descrição de um mundo assolado pela indústria do entretenimento soava
caricatural quando Bradbury publicou Fahrenheit 451. Atualmente, porém, nenhum
leitor do romance terá dificuldade em ver nesse quadro desolador um instantâneo
de nossa realidade mais cotidiana. Os monitores de televisão, onipresentes
nesse livro, podem ter sido inspirados no Grande Irmão de Orwell; hoje,
ironicamente, se parecem mais com os reality shows. Em Fahrenheit 451, não há
um poder central que tudo vigia (como acontecia em 1984), mas um ressentimento
geral que produz “bombeiros” — essa corporação de censores com mandato popular
para representar “o rebanho impassível da maioria”.
Sob certo aspecto, portanto,
Fahrenheit 451 não é uma distopia, mas um romance realista, que flagra a
dialética demoníaca da sociedade de massas, em que as massas parecem ser
títeres das elites, mas na qual as elites só existem em função das massas. Como
lembra Faber, em um diálogo com Montag, a sociedade do espetáculo é uma espécie
de servidão voluntária:
“Os bombeiros raramente são
necessários. O próprio público deixou de ler por decisão própria. Vocês,
bombeiros, de vez em quando garantem um circo no qual multidões se juntam para
ver a bela chama de prédios incendiados, mas, na verdade, é um espetáculo
secundário, e dificilmente necessário para manter a ordem. São muito poucos os
que ainda querem ser rebeldes”.
Ao final do romance, Montag se
refugia em uma comunidade de homens que vivem à margem da sociedade e que, para
escapar à ameaça dos juízes e dos censores, decoram livros. Eles podem, assim,
apagar os perigosos vestígios materiais de sua devoção, ao mesmo tempo que
preservam a memória da escrita. Entretanto, esse pequeno gesto de rebeldia
estará sempre ameaçado pelo veredicto de Heine: “Onde se lançam livros às
chamas, acaba-se por queimar também os homens”.
Manuel da Costa Pinto
***
Prefácio para Fahrenheit 451 de Ray Bradbury, publicado na edição da Editora Globo, 1981.
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