terça-feira, 14 de janeiro de 2014

Ciro Flamarion Cardoso - A ficção científica no Brasil

A ficção científica no Brasil

Existe uma ficção científica brasileira?

Sua inexistência foi claramente declarada em 1988 num manifesto, publicado em revista de um clube de fãs, Somnium, por Ivan Carlos Regina. Entenda-se, porém, o seguinte: na expressão "ficção científica brasileira", a ênfase de Regina, depois apoiado no mesmo sentido por Roberto de Sousa Causo, está em "brasileira". Isto é, parecia-lhes urgente e necessário o surgimento de uma corrente específica, original, de ficção científica nacional.

Braulio Tavares, ao localizar nos anos anteriores ao final da década de 1930 uma proto-ficção científica brasileira, afirmava que com Jerônimo Monteiro (1908-1970) é que, da década de 1940 em diante, surgiu uma ficção científica que via a si mesma como tal. A qual, portanto, existe.

Minha opinião a respeito é que a ficção científica brasileira existe, talvez desde 1960, quando se deu - mas com base em duas editoras pequenas - alguma autoconsciência e relativa vigência ao gênero entre nós; mas que ela existe apenas, sendo pequeno seu peso específico nas letras nacionais, além de apresentar poucas tendências de continuidade em suas linhas de atuação e em sua própria presença, que flutua muito no tempo, na ausência de uma massa crítica decisiva (do lado dos autores mas também do público e, portanto, das editoras).

As raízes tanto da presença quanto da pequena importância, até agora, da ficção científica como gênero no Brasil foram já bem percebidas, por autores diversos, em certas características do país. A partir da segunda metade da década de 1950, sobretudo, são patentes tanto a forte urbanização quanto uma industrialização e um setor de serviços que contêm alguns elementos altamente sofisticados e em dia com a tecnologia contemporânea (incluindo a da chamada "revolução informacional"; muito pouco ainda, porém, no setor das biotecnologias derivadas do descobrimento do código genético). No entanto, os governos brasileiros, sem excetuar o atual, nunca dispuseram de políticas consistentes de educação, ciência e tecnologia, pelo qual nossa massa crítica nesses terrenos é ainda, no conjunto, muito débil. Em suma, em nossa sociedade brigam entre si tendências contraditórias que ao mesmo tempo favorecem e limitam as possibilidades de surgimento e desenvolvimento da ficção científica como gênero.

É preciso reconhecer, também, que o pouco que há do gênero entre nós se limita quase de todo a textos literários. Recordo vagamente uma série radiofônica que acompanhei quando criança pela Rádio Nacional: Átoman, o homem atômico; pelo que me lembro, e à luz do que hoje sei acerca da história do rádio, era decalque de programas similares norte-americanos, sem um pingo de originalidade. Não ignoro que Jerônimo Monteiro realizou transmissões radiofônicas de obras de ficção científica na década de 1930, mas não disponho de maior informação a respeito. Até onde sei, a TV brasileira se limitou, em matéria de ficção científica, a oferecer enlatados importados dos Estados Unidos. Situação análoga - diferentemente daquela da Argentina, que tem uma interessante tradição própria no setor - caracterizou a história em quadrinhos. Em matéria de cinema, além de um ou outro curta-metragem, só conheço o filme Brasil ano 2000, de Walter Lima Jr. (1968).

Antes de 1960 enxergo, quando muito, uma proto-ficção científica, mesmo admitindo que Jerônimo Monteiro fosse, já, um autor do gênero: um caso único não muda de verdade o panorama, apesar do entusiasmo e efeito multiplicador que, afinal de contas, só após 1960 aquele escritor de fato teve condições de exercer. Ainda assim, podem-se citar exemplos diversos, que a erudição crítica vem reunindo. Dentre os textos que eu mesmo (tendo nascido em 1942) li quando criança - o que entre outras coisas significa que pude achá-los com facilidade na década de 1950 -, livros pelos quais tenho por isso certo afeto, independentemente de seus eventuais defeitos, citarei: O choque das raças (depois chamado O presidente negro), de Monteiro Lobato (1926); Viagem à aurora do mundo, de Érico Veríssimo (1939); e A cidade perdida, de Jerônimo Monteiro (1948). Minha própria experiência indica, porém, que o universo ficcional acessível a um já ávido leitor de ficção científica tinha por força de consistir, naquela época, quase inteiramente em traduções de romances e contos estrangeiros - que, um pouco mais tarde, eu começaria também a ler no original.

A década de 1960 foi marcada por vários eventos. O mais importante foi a ação de duas editoras pequenas - a GRD de Gumercindo Rocha Dorea e a Edart de Álvaro Malheiros - na animação do gênero no Brasil. Dorea, em especial, além de publicar traduções de prestigiosas obras estrangeiras, atraiu para a GRD conhecidos autores brasileiros de fora do gênero (tais como Dinah Silveira de Queiroz, Rachel de Queiroz e Antônio Olinto, entre outros), encorajando-os a que escrevessem obras de ficção científica, também chamou a si pioneiros do gênero como Jerônimo Monteiro, Fausto Cunha (cuja atuação até então fora principalmente como crítico literário) e Rubens Teixeira Scavone, descobrindo, ainda, novos talentos, André Carneiro em especial.

Em 1969, o tradutor José Sanz organizou no Rio de Janeiro, em conexão com o Festival Internacional de Cinema, o Simpósio de Ficção Científica, que contou com a presença de conhecidos nomes do gênero, como por exemplo Arthur C. Clarke e A. E. van Vogt. Entretanto, a publicação do evento mostrou seu caráter de vitrine brasileira para autores internacionais, sem participação nacional efetiva.

A década viu também sério esforço de Jerônimo Monteiro no sentido de congregar um grupo de fãs de ficção científica, com reuniões em sua própria casa,culminando no ano de sua morte (1970) na criação do efêmero Magazine de Ficção Científica, que chegou a lançar alguns novos nomes, além de publicar contos de membros do que se conhece como "geração GRD".

A década de 1970 foi, no conjunto, de retração, mesmo se autores como Fausto Cunha, André Carneiro e Rubens Scavone continuaram a publicar e outros surgiram, como Gerald C. Izaguirre (de curta carreira no gênero).

Uma retomada se nota na década de 1980, menor talvez em intensidade quando comparada ao boom da década de 1960, mas com características novas e que pareciam promissoras. A revitalização do gênero agora vinha, com efeito, da presença de clubes de fãs com suas próprias publicações caseiras ou semiprofissionais. Entre outras associações, surgiram: em 1982, a Sociedade Astronômica Star Trek, com seu boletim Trek News; em 1983, o Clube de Ficção Científica Antares, no Rio Grande do Sul, que instituiu o prêmio Fausto Cunha e publicava o Boletim Antares; o Clube de Leitores de Ficção Científica, criado em 1985 por C. Roberto Nascimento, com seu órgão Somnium. No conjunto, São Paulo foi - de longe - o centro da maior atividade, sendo interessante uma grande participação do interior do estado. No Rio de Janeiro destacavam-se, desde a década anterior, os esforços de Fausto Cunha e Braulio Tavares.

De alguma importância, embora efêmero (1990-1992), foi o Isaac Asimov Magazine - versão brasileira da conhecida revista -, publicado pela editora Record, que instituiu o concurso Jerônimo Monteiro. Em 1987 Roberto de Sousa Causo lançava, em sua revista artesanal Anuário Brasileiro de Ficção Científica, o Prêmio Nova, desde 1993 vinculado à Sociedade Brasileira de Arte Fantástica.

Uma das novidades do relativo renascimento ocorrido especialmente a partir de meados da década de 1980 foi a diversificação de interesses e, apesar de o movimento partir no princípio de amadores, o desenvolvimento de uma escrita mais segura e conhecedora das regras que o gênero vinha criando há décadas, bem como de suas novas tendências (new wave, cyberpunk).

Gerson Lodi-Ribeiro ressalta que, no Brasil, o público leitor sempre manifestou clara preferência pela ficção científica hard: quanto a isto, paralelamente ao consumo habitual de obras dos Estados Unidos e da Inglaterra, agora surgia também uma produção hard devida a autores brasileiros (Jorge Luiz Calife, Henrique Villibor Flory, o próprio Lodi-Ribeiro). Outros autores se caracterizaram por assuntos ligados a temas históricos ou a temporalidades virtuais (Roberto Causo, Rubens Teixeira Scavone, Ivanir Calado, Henrique Flory - já citado acima pela ficção hard que também produziu). André Carneiro foi comparado por van Vogt a Kafka e a Camus: aparece na ficção científica nacional como um expoente do subgênero soft, com ênfase em temas que têm a ver com o sexo, sendo o autor brasileiro do gênero de maior inserção internacional. Também no subgênero soft é que atua com maior freqüência Roberto Schima.

Minha impressão pessoal é que o impulso iniciado em meados da década de 1985 manteve-se relativamente vigoroso por dez anos, perdendo força a seguir. Se for assim, confirma-se que a presença entre nós da ficção científica entendida como produção nacional é ainda instável e mesmo um tanto errática, pelas razões já indicadas.

A FICÇÃO CIENTÍFICA, IMAGINÁRIO DO SÉCULO XX
Uma introdução ao gênero
Ciro Flamarion Cardoso (c) 1998