Brian Aldiss
prefácio para a coletânea:
SUPERBRINQUEDOS DURAM O VERÃO TODO
E outros contos de um tempo futuro
Prefácio
Tentando agradar
“Superbrinquedos duram o verão
todo” é a história de um garotinho que não consegue agradar à mãe por mais que
se esforce. Confuso com a reação dela, o menino não percebe que ele é um
andróide, uma construção habilidosa de inteligência artificial, assim como seu
único aliado, o ursinho de pelúcia Teddy.
Foi essa a história que comoveu
Stanley Kubrick e que ele quis tanto transformar em filme. Depois de certo
esforço de persuasão, vendi os direitos para ele e, por algum tempo,
trabalhamos juntos num possível roteiro.
Como seria de esperar, achei-o
genial mas exigente. Afinal de contas, ele batalhara muito para obter
independência. Exigia tanto de si quanto de todos à volta dele.
Presenciei um exemplo dessa
independência quando os figurões da Warner Brothers quiseram conhecê-lo.
Alegando como desculpa um ódio mortal de avião, em vez de se locomover até os
Estados Unidos, Kubrick conseguiu que os diretores, de cujo apoio financeiro dependia,
fossem a Londres. Estes, uma vez lá, o convidaram para uma reunião no hotel.
Kubrick disse que estava ocupado demais. Os executivos da Warner tiveram de
fazer nova viagem, dessa vez até St. Albans, para vê-lo.
Kubrick tratava seus
funcionários com esse mesmo egoísmo: era genial mas exigente. Precisava não só
manter a independência como também alimentar o mito, o mito de um gênio-ermitão
criativo porém excêntrico.
Meu contato com ele foi
amistoso. Mencionei seus três filmes de ficção científica em meu livro Billion
year spree [Orgia do ano bilhão], que traça uma história do gênero, observando
que Doutor Fantástico, 2001: uma odisséia no espaço e Laranja mecânica fizeram
dele “o grande escritor de ficção científica da época”. Kubrick calhou de comprá-lo
e ficou satisfeito com o comentário.
Um belo dia, em meados dos anos
70, recebi um telefonema de Kubrick. Para mim foi uma surpresa. Ele embarcou
num longo monólogo, presumivelmente para me testar como ouvinte. Bem, acho que
devo ter passado no exame, porque me convidou para um almoço. Encontramo-nos em
julho de 1976, num restaurante em Boreham Wood.
Nessa época, Kubrick parecia um
perfeito Che Guevara, dos pés à cabeça — botas pesadas, traje verde-oliva,
boina enterrada na cabeleira encaracolada e barba. Conversamos sobre filmes,
ficção científica e bebida. Foi uma conversa absolutamente agradável e bastante
demorada.
Seu filme Barry Lyndon fora
lançado no ano anterior e, embora a fotografia seja de uma beleza ímpar, a
frigidez de cristal polido apresentada no filme não caiu no gosto do público.
Talvez Kubrick estivesse incerto sobre que filme rodar em seguida. Passamos a
ter um relacionamento cordial; encontramo-nos uma ou duas vezes para almoçar,
no decorrer dos anos, e sempre falávamos sobre o tipo de filme que poderia
fazer sucesso.
Recomendei Martian time-slip
[Tempo de lapso marciano], um romance dos anos 60, de Philip K. Dick. Ele não
se interessou. Mais tarde, dois anos de minha vida seriam ocupados tentando
levar esse mesmo romance para a tela, escrevendo o roteiro em parceria com meu
então agente para a mídia, Frank Hatherley.
Minha mulher Margaret e eu fomos
até o Castelo Kubrick algumas vezes e almoçamos com Kubrick e sua mulher
Christiane, pintora, cujas telas brilhantes iluminavam diversas paredes da
casa. Kubrick gostava de atores e os admirava. Achava Peter Sellers um gênio.
Possuía um pequeno elenco de confiança, gente como Sterling, Hayden, Philip
Stone, Norman Rossiter e Sellers. “Você não precisa de nenhum diálogo”, ele me
disse certa vez. “Pode jogar fora. Um bom ator pode transmitir tudo só com um
olhar.”
Enquanto filmava o romance de
Stephen King O iluminado, ele permaneceu necessariamente esquivo. Voltou a
aparecer em agosto de 1982, mencionando numa carta nosso último almoço, ocasião
em que “passamos quase o tempo todo falando de Guerra nas estrelas e dos
motivos que levam histórias até bem bobas a se tornarem de fato uma forma de
arte”. Era verdade; naquele dia embarcamos numa conversa fascinante em que
tentamos levantar os elementos necessários para fazer, com sucesso, um filme de
ficção científica com laivos de conto de fada. Entre os elementos enumerados
estavam um rapaz de origem humilde que precisa combater um mal monstruoso, um
grupo variado de sujeitos, inúmeros desafios superados, o mal derrotado apesar
de todos os empecilhos e o jovem que obtém a mão de uma princesa. Depois demos
risada: tínhamos feito uma descrição quase que cena por cena de Guerra nas
estrelas.
Aquela carta de Kubrick
continuava com uma conversa sobre meu conto “Superbrinquedos”. A pedido dele,
eu lhe enviara alguns de meus livros, inclusive The Malacia tapestry [A
tapeçaria Malácia] e Moment of eclipse [Época de eclipse], uma coletânea de
contos publicada pela Faber & Faber que incluía “Superbrinquedos duram o
verão todo”. Kubrick escreveu: “O que me ficou, no entanto, foi a convicção de
que esse conto é com certeza um ótimo começo para uma história mais longa,
ainda que, infelizmente, eu não tenha tido nenhuma outra idéia sobre como
desenvolvê-la. De todo modo, estou começando a achar que o velho subconsciente
não engata para valer em algo que não lhe pertence...”.
Esse conto — no fundo uma
vinheta — fora publicado inicialmente na revista Harper’s Bazaar em dezembro de
1969; em 1982, eu tive alguns problemas sérios com o fisco, de modo que, muito
relutantemente, vendi o texto a Kubrick. Ele comprou quase todos os direitos;
lembro-me de que a frase “para sempre” aparecia com bastante freqüência no
contrato. Em retrospecto, percebo que o fato de o conto ter se tornado seu não
causou nenhuma grande mudança no processo criativo. Kubrick continuou não
conseguindo fazer do conto um filme.
Depois de muito vaivém entre
agentes, o contrato foi assinado em novembro de 1982. E eu fui trabalhar com
ele no roteiro.
Todos os dias, uma limusine
aparecia em minha porta, em Boars Hill, e eu era levado ao Castelo Kubrick, uma
residência monumental, nas proporções de um Blenheim, nos arredores de St.
Albans. Quase sempre ele estivera acordado metade da noite, vagando por seus
imensos aposentos desolados, entulhados de aparelhagens. Ele surgia todo
amarfanhado, dizendo: “Vamos tomar um pouco de ar, Brian”.
Nós abríamos a porta para todo
aquele verde interminável. Kubrick acendia um cigarro e dávamos alguns passos,
cerca de metade de um campo de críquete, com ele resfolegando pelo caminho.
“Chega de ar fresco”, me dizia então. E lá íamos nós de volta para dentro. Era
uma espécie de brincadeira. Nosso relacionamento também era uma espécie de
brincadeira.
A certa altura, depois de
introduzir uma nova personagem no roteiro, Kubrick me perguntou: “Brian, o que
será que as pessoas que não fazem filmes nem escrevem ficção científica fazem
da vida?”. Ele era tão inteligente, tão dedicado a seu trabalho. Infelizmente,
também era impaciente e não permitia nem discussão nem exame de algum fio
narrativo do qual não gostasse de pronto.
No início, eu não conseguia
enxergar de que forma minha vinheta poderia ser transformada em um
longa-metragem. Aí um dia, durante o café da manhã, de repente vi tudo.
“Achei!”, disse eu a Margaret. Liguei para Kubrick. “Venha até aqui”, ele
falou.
Eu fui. Contei-lhe. Ele não
gostou.
E assunto encerrado. Kubrick não
era homem de aceitar uma idéia e depois virá-la do avesso para ver se tinha
algum mérito. Ainda que isso fosse um sinal de clarividência, talvez houvesse
também uma certa fraqueza naquele tipo de abordagem.
Indício funesto, talvez, foi o
fato de ter recebido de Kubrick, assim que começamos o projeto, um exemplar
ricamente ilustrado da história de Pinóquio. Eu não conseguia, ou não queria,
ver os paralelos existentes entre David, meu andróide de cinco anos, e aquela
criatura de madeira que se torna humana. Acabei percebendo que Kubrick queria
que David se tornasse humano e queria também que a Fada Azul se materializasse.
Nunca, jamais, em sã consciência, reescreva antigos contos de fada, eu diria.
Trabalhar com Kubrick foi sem
dúvida instrutivo. O problema é que eu vinha trabalhando sozinho por cerca de
trinta anos; não me agradava a idéia de trabalhar com e, menos ainda, sob
qualquer pessoa. Mas nosso relacionamento foi amistoso.
Quando empacávamos, saíamos para
dar uma volta e dizer alô a Christiane. Em geral ela estava pintando numa
enorme sala vazia, com janelas magníficas para a vasta savana kubrickiana.
Kubrick também gostava de preparar o nosso almoço, em geral bife e vagem.
Eu não conseguia ver aquela
minha vinheta transformada em longa-metragem. Ele me tranqüilizava. Dizia que
era mais fácil aumentar um conto do que reduzir um romance para um filme. Um
filme continha no máximo sessenta cenas, ao passo que um romance podia conter
centenas, cada uma delas diluindo-se em outra, sem despesas adicionais.
Além disso, ele dizia, já tinha
conseguido transformar o conto de Arthur C. Clarke, “O sentinela”, também de
duas mil palavras como “Superbrinquedos”, num grande filme. Poderíamos fazer o
mesmo com meu conto. Só mais tarde percebi a falha dessa linha de raciocínio:
enquanto a história de Arthur olha para fora, para o sistema solar, minha
história olha para dentro.
Começamos a trabalhar a sério.
Todos os dias, eu anotava nosso progresso num grande livro vermelho. Quando
voltava para casa, à noite, Margaret e eu conversávamos um pouco sobre como
fora o dia, tomando um drinque. Depois eu jantava e em seguida ia para meu
escritório transcrever as notas em forma de roteiro sem diálogo, como Kubrick
queria. Então eu enviava os trechos para ele, por fax. Na época ainda estava na
moda ter fax; não poderíamos ter trabalhado tão bem sem ele.
Concluída essa tarefa, eu
anotava num diário particular os acontecimentos e os não — acontecimentos do
dia. Houve por exemplo a semana em que o mundo parecia estar mergulhando na
recessão. Kubrick acompanhava de perto os mercados de capital. Um dia entrou na
sala onde eu trabalhava e aconselhou, muito soturno: “Brian, se eu fosse você,
vendia todas as suas ações e comprava barras de ouro”. Minha barra de ouro
teria sido do tamanho de um tablete de goma de mascar.
Na manhã seguinte voltávamos a
nos reunir e repassávamos o trabalho do dia anterior, muitas vezes apenas para
descartá-lo por completo. Não é de admirar que fumássemos feito chaminés e
tomássemos galões de café...
Por uns tempos tudo andou bem.
Escrevi um episódio chamado Taken out [Arrancado] em fevereiro de 1983 e o
enviei por fax no meio da noite. Ele me ligou, entusiasmado. “É simplesmente
brilhante. Estou muito emocionado. O jeito de fazer ficção científica é este,
contar as coisas como se tudo fosse normal, sem que nada precise ser explicado.”
Eu: “Em outras palavras, você
trata o leitor/espectador como se ele também fizesse parte do futuro que você
está descrevendo”.
Kubrick: “Acho que sim, você
simplesmente não entra em todos aqueles detalhes científicos horrendos”.
Eu: “Quanto mais você explica,
menos convincente fica”.
Kubrick: “Parece que você tem
duas maneiras de escrever — uma brilhante e outra não tão boa assim”.
Tivemos nossas desavenças. Nunca
mais consegui agradá-lo tanto quanto com Taken out. Embora muitas vezes
déssemos boas gargalhadas enquanto trabalhávamos, não fazíamos progresso. Era
trama atrás de trama escavada na areia.
Kubrick não queria nem ouvir
falar em confiar na narrativa, como eu advogava. Salientava que, mesmo que um
filme pudesse conter no máximo sessenta cenas, para ele eram necessárias apenas
umas oito “unidades não-submersíveis”, como ele as chamava (conseguimos três,
antes de interromper o trabalho, adaptando dois de meus contos anteriores —
“All the world’s tears” [Todas as lágrimas do mundo] e “Blighted profile”
[Perfil iluminado] — ao conto original).
Blade Runner — O caçador de
andróides, de Ridley Scott, quase inteiro em disco laser.
Kubrick estava convencido de que
um dia a inteligência artificial tomaria conta do mundo e de que a humanidade
seria superada. Os seres humanos não eram confiáveis nem inteligentes o
suficiente. Durante um de nossos freqüentes impasses, discutimos a
possibilidade da derrocada da União Soviética, com o Ocidente enviando
tanques-robôs e andróides para salvar o que fosse possível. Era um
acontecimento dramático o bastante para insuflar nossa imaginação. Isso foi em
1982 e nós entendíamos que poderia ocorrer um colapso econômico na URSS — mas
como seria? Em que circunstâncias?
Depois de um ou dois dias, desistimos
da idéia. Mas vamos supor que tivéssemos pensado em todas as possibilidades e
tivéssemos sido capazes de reproduzir exatamente os verdadeiros acontecimentos
de 1989, que estavam a sete anos de distância apenas. Vamos supor que
tivéssemos criado uma figura à Gorbachev para presidente da União Soviética,
que tivéssemos mostrado a Hungria abrindo seus portões para que os alemães do
Leste entrassem em Berlim e no Ocidente, que tivéssemos mostrado o Muro de
Berlim sendo derrubado, governos comunistas renunciando ao poder, ditadores
sendo executados, o fim da Guerra Fria e o maior movimento jamais acontecido em
um único dia na história dos povos europeus. Na verdade, um momento único na
história mundial.
E se tivéssemos posto isso tudo
na tela em 1982? Ninguém teria acreditado em nós. Até mesmo a ficção científica
é a arte do plausível. Então, talvez digam os críticos, aí está a fraqueza da
ficção científica. É a vida real que se encarrega da arte do incrível, como fez
no final dos anos 80 — e continua a fazer, com a ascensão e o crescimento da
União Européia.
Os anos foram se arrastando. Não
chegávamos a parte alguma. Kubrick foi ficando impaciente. Mas a Fada Azul
ainda ressurgia dos mortos. Eu tinha a sensação de estar sendo tragado, ao
mesmo tempo que tentava continuar sendo marido e pai.
Kubrick via um problema
fundamental com David, o menino andróide. Ele poderia perfeitamente ser
representado, no filme, por alguém de carne e osso fantasiado de andróide. No
entanto, o perfeccionismo de Kubrick sugeria que o melhor era construir um
andróide de verdade. Examinamos essa possibilidade com alguma profundidade. O
primeiro obstáculo tecnológico a superar era fazer a criaturinha se mover de
forma a parecer um menino mesmo — andar, virar, sentar e por aí afora. A
tecnologia do cinema progrediu muito, de lá para cá, claro, e hoje em dia a
simulação computadorizada daria um jeito nisso.
Em 1987 foi lançado Nascido para
matar. Essa retomada tardia da Guerra do Vietnã foi um grande sucesso no Japão,
mas nem tanto em outros lugares do mundo. Com a ajuda de trinta e seis
palmeiras importadas da Espanha, Kubrick criou um Vietnã no meio de algumas
ruínas da zona leste londrina (onde hoje é Canary Wharf, no East End). “É quase
impossível construir uma ruína convincente”, dizia ele. “E o entardecer do
inverno na Inglaterra se parece com o entardecer no Vietnã.” Os atores pelados
filmaram em pleno inverno, com aquecedores soprando ar quente o tempo todo
sobre eles, para que não ficassem arrepiados. Ah, a magia do cinema!
Por volta de 1990, estávamos em
dificuldades. Agentes e advogados trocavam cartas. Kubrick e eu estávamos
trabalhando com a possibilidade de inundar Nova York apenas para que a Fada
Azul pudesse emergir das profundezas. Tentei persuadi-lo a criar um grande mito
moderno capaz de rivalizar com Doutor Fantástico e com 2001 e a fugir dos
contos de fada.
Era absurdo de minha parte. Fui
sumariamente eliminado do filme.
Ele nunca disse adeus nem
pronunciou nenhuma falsa palavra de agradecimento. Não. Um novo cigarro foi
aceso, as costas foram viradas. E “Superbrinquedos” foi rebatizado de “A.I.” —
e destinado a jamais ser rodado por ele.
Kubrick era dois tipos de gênio.
Além dos filmes, com sua variedade fascinante, possuía o dom de manter o mundo
longe de sua porta criativa e o de cultivar a lenda de ermitão. Ele sempre
soube que o tempo era curto.
Os gênios não se preocupam com
as cortesias do dia-a-dia. Têm outras coisas na cabeça. O melhor a fazer é não
ficar sentido com seus hábitos mais mesquinhos. Nem mesmo Arthur C. Clarke, o
parceiro de Stanley em 2001, foi capaz de expandir minha vinheta e
transformá-la num grande filme. Eis aí uma lição para todos nós, se ao menos eu
conseguisse imaginar qual seja.
Foi um alívio seguir meu próprio
— e doce — caminho de novo. Durante alguns anos havia servido como um dos
tentáculos de Kubrick. Ele tinha muitos tentáculos. Numa ocasião, quando debatíamos
o conceito de usar um andróide de verdade, Stanley declarou que os americanos
viam os robôs apenas como ameaças. Eram os japoneses que de fato gostavam dos
robôs; e seriam eles que com toda certeza gerariam os magos da eletrônica
capazes de construir os primeiros andróides genuínos. Chamou Tony Frewin, seu
fiel braço direito.
“Ponha o Mitsubishi na linha.”
(Digamos que fosse Mitsubishi, já que me esqueci realmente do nome da empresa.)
“Com quem você quer falar na
Mitsubishi, Stanley?”
“Ponha o senhor Mitsubishi na
linha.”
Um pouco depois, o telefone
tocou. Kubrick atendeu. Uma voz do outro lado disse: “Ah, senhor Stanley
Kubrick? Aqui é Mitsubishi. Em que posso ajudá-lo?”
Todo mundo neste planeta
conhecia o nome de Stanley Kubrick. Não se podia esperar que um homem desses
fosse igual a nós.
Então por que “Superbrinquedos”
não foi filmado? Porque as pessoas que vieram depois de mim, cada uma delas
tentando em vão fazer a coisa funcionar, foram forçadas a viajar ao longo das
linhas estabelecidas por ele.
Acredito que Kubrick se enganou.
Obcecado pelo sucesso estrondoso dos filmes de ficção científica da época,
decidiu levar minha penosa cena doméstica para os confins da galáxia. Afinal de
contas, tinha feito algo parecido e com grande sucesso com o conto de Clarke.
Mas, para começo de conversa, “O
sentinela” olha para fora. Fala de um mistério em alguma outra parte, ao passo
que “Superbrinquedos” fala de um mistério interior. David sofre porque não sabe
que é uma máquina. Esse é o verdadeiro drama; como disse Mary Shelley de seu
Frankenstein, “ele fala aos receios misteriosos de nossa natureza”.
Uma possibilidade para o filme
seria mostrar David enfrentando sua verdadeira natureza. Seria um choque
perceber que é uma máquina. David poderia desenvolver um defeito e o pai então
o levaria à fábrica, onde mil outros andróides idênticos estão sendo
fabricados. Ele se autodestrói? A platéia deve ficar sujeita a um tenso e
alarmante drama de claustrofobia, deve ser deixada com as perguntas finais.
“Importa de fato que David seja uma máquina? Deveria importar? E até que ponto
somos todos máquinas?”
Por trás dessa charada
metafísica há uma história simples — a história que atraiu Stanley Kubrick —,
de um menino que nunca foi capaz de agradar à mãe. Uma história de amor
rejeitado.
Stanley Kubrick morreu em 1999.
O homem-mistério virou notícia. Eu me cansei de gravar entrevistas. Estava
tentando escrever um romance. Ocorreu-me reler “Superbrinquedos”. E aí vi que
estava contando a mim mesmo o que acontecia em seguida. Trinta anos depois
daquele primeiro, escrevi um segundo conto, continuando as aventuras de David e
Teddy, o ursinho.
Um dia recebi uma visita. Uma
visita muito simpática de Jan Harlan, cunhado e sócio de Kubrick. Jan queria
que eu figurasse num documentário que estava fazendo sobre a vida de Kubrick.
No final da tarde, eu lhe dei o novo conto, “Superbrinquedos quando vem o
inverno”.
Jan enviou o conto para Steven
Spielberg, que herdara todos os projetos inacabados de Kubrick.
Nesse meio tempo, eu havia
escrito para Spielberg. Na carta, sugeria que David poderia se ver diante de
mil réplicas de si mesmo. Ele gostou da idéia e Jan ofereceu-se para comprar a
frase contendo a idéia. Claro, quem não ficaria encantado com a possibilidade
de vender uma frase, uma única frase? Mas, àquela altura, eu já sabia como o
ciclo de David deveria terminar e escrevera um terceiro conto. Os três contos juntos
continham os contornos daquilo que eu acho ser necessário a um filme. Nada de
Nova York inundada, nada de Fada Azul. Apenas um drama muito intenso e poderoso
de amor e inteligência.
O conto “Superbrinquedos em
outras estações” foi enviado para Jan e Spielberg. Nele estava incluída a frase
mágica.
Por meio de um arranjo amigável
com a Warner Brothers, Spielberg adquiriu todos os três contos.
Embora me sinta feliz de ser o
único homem a ter vendido contos para dois cineastas magníficos, Kubrick e Spielberg,
sei que Spielberg concordou em filmar “Superbrinquedos” — agora intitulado A.I.
— da forma como Kubrick planejara fazê-lo.
As filmagens começaram em Long
Island em junho de 2000. O lançamento do filme foi programado, muito
apropriadamente, para 2001.
***
Ficha Bibliográfica
Título: Superbrinquedos Duram o Verão Todo: e outros contos de um tempo futuro
Autor: Brian Aldiss
Tradução: Beth Vieira
Editora: Companhia das Letras
Ano de publicação: 2001
Edição: 1ª edição
Local de publicação: São Paulo
Número de páginas: 272
ISBN: 9788535901603 / 8535901604
Título original: Supertoys Last All Summer Long