O Pequeno Ser Prateado — Conto Completo de Roberto Schima

Roberto Schima — O Pequeno Ser Prateado

   Faz muito tempo...
   A memória, principalmente com o avançar da idade, é capaz de pregar-nos muitas peças, distorcer alguns fatos, suprimir muitos outros, misturar sonho à realidade. Entretanto, aquele acontecimento em particular, quando eu tinha dezessete anos, jamais me esqueci; senão em todos os seus detalhes, pelo menos no essencial. Está vivo dentro de meu coração, de minha alma, como se tivesse acontecido agora há pouco. Porém, já se passaram trinta e cinco anos... Trinta e cinco! Uma vida inteira praticamente... como uma canção distante ou um abismo profundo. Todavia, aquilo que ocorreu foi a ponte, o meu elo atual com aquele “eu” deixado para trás em uma eternidade de tempo. Foi o abismo devolvendo seu olhar para mim, sobre todos nós.
   Atrever-me-ei a encará-lo novamente?
   Ainda me recordo daquele brilho de obsidiana no terreno côncavo. Os cheiros incinerados partindo da mata. A gritaria ininteligível. Os relâmpagos. O medo. O cintilar de prata na noite. E, principalmente, o zumbido penetrante, atravessando-me o cérebro de um hemisfério a outro repetidamente.
   Mas, como dizem por aí, é melhor eu “começar do começo”...
Abro um dos olhos, apenas um...

   E encaro.

***


   Eu retornava para casa como de costume. Era uma noite límpida, apesar de poucas estrelas serem visíveis. A vida na cidade e no subúrbio era assim. Além de sugar a vida da gente, roubava também as estrelas do céu. A primavera perfumava as ruas e as casas com o seu odor adocicado e morno. Era quase meia-noite. Sentia-me cansado de tanto estudar. Ficara enfiado o dia inteiro nos livros e apostilas, preparando-me para as provas vestibulares. A concorrência era pesada, ainda mais para alguém como eu, que viera do ensino público, e não via condições alguma de arcar com uma faculdade particular. Economizara um ano inteiro de trabalho, pedira demissão e, agora, custeava o cursinho e procurava estudar em tempo integral. Era tudo ou nada.

   As pessoas dormiam em suas casas, vivendo o místico universo dos sonhos, ou, então, assistindo a algum “enlatado” americano pela TV. As luzes das casas e dos postes projetavam sombras artificiais. Estava tudo muito quieto. Nas ruas, apenas o som de meus passos no asfalto fazia-se ouvir, fazendo-me recordar um poeminha que escrevera alguns meses antes, no outono, em um momento de solidão, incerteza e pieguice:

Passos no Outono

No caminhar solitário
Pelas ruas sombrias,
Apenas o som de seus passos
No asfalto se ouvia.
Eventualmente, o roçar do vento
Nas folhas fazia
Um estranho murmúrio
Que, na distância, sumia.
As nuvens cobriam a Lua
Em triste melancolia,
Enquanto as estrelas choravam
O dissipar da alegria.
O frio gelava suas faces,

Mas ele nada sentia.
As luzes ao longe se apagavam
E o fino sereno caia.
Lembranças na sua mente rodavam:
Sonhos, ideais, fantasias,
De um mundo perdido no passado,
De paz, pureza e harmonia.
No entanto o tempo voava,
E um novo mundo surgia.
Lembranças ficavam para trás.
Não há paz, pureza e alegria.
Seus passos se perdem na noite,
E ele tem que encarar o dia,
Deixando suas pegadas no asfalto
E as recordações na calçada fria.



   À medida em que me aproximava de casa, um sobrado geminado, quase na esquina e em um local elevado, pus-me a observar na distância as luzes perdendo-se no horizonte. Eram como lantejoulas bordadas em um curvilíneo tecido negro. Sentia-me vazio, calmo... não, calmo não, simplesmente exaurido, incapaz de focar o pensamento em coisa alguma. Andava devagar, saboreando a quietude, inspirando a noite para dentro de mim.
   O silêncio era impressionante, quase sobrenatural: nenhum grilo, nenhum roçar de papéis nos fios de eletricidade, nada. Só o cansaço me fez não pensar no assunto. Minha mente fora absorvida pelos problemas de Matemática, Física e Química; decorando os difíceis nomes da Biologia e as regras gramaticais na aula de Português com suas infindáveis exceções. Em História, tivera aula sobre o Iluminismo e o Renascimento, períodos que trouxeram de volta a autoestima do ser humano, recolocando-o no centro do Universo enquanto a mais elevada criatura da Terra, obra e imagem de Deus.    Não me consolou muito...
   Fitando a abóbada, vi algumas estrelas tentando sobreviver na atmosfera poluída. A Lua também brilhava palidamente; acho que era minguante, não sei ao certo agora.
   Foi então que, repentinamente e de soslaio, observei um traço de luz riscar o céu como um giz mágico na lousa do espaço. “Meteoro”, pensei sem dar maior importância a princípio. Mas os meteoros desapareciam rápidos com a fricção, já que boa parte deles não era muito maior do que uma ervilha. Todavia, aquele “meteoro” em particular persistiu, cruzando o céu de leste a oeste.

   Apesar de eu continuar a não ouvir coisa alguma, o brilho daquele objeto foi aumentando, a ponto de iluminar os telhados e as ruas. E foi crescendo e crescendo. Meu torpor cedeu lugar a inquietação e ao medo. Por fim ele se perdeu atrás de algumas árvores distantes.
   Quase no mesmo momento, um estrondo, uma onda de choque, fez o chão tremer e as damas-da-noite que enfeitavam a rua em que eu me encontrava farfalharem, ocasionando uma chuva de folhas e pétalas brancas. Perdi o equilíbrio na guia da calçada e cai. Esfolei os joelhos e as palmas das mãos que passaram a arder como se eu os tivesse encostado em uma chapa quente. Cadernos e apostilas esvoaçaram feito aves assustadas. Machucado, sujo e sentindo muita dor, recolhi meus materiais de escola conforme pude, sem desprender de todo os olhos da direção de onde supunha ter ocorrido o impacto. Avistei luzes multicores explodirem de baixo para cima como grandes fogos de artifício.
   Não demorou para as pessoas assustadas emergirem de suas casas.

   — Ei, você! Ouviu só esse barulho? 
— perguntou um sujeito gordo de roupão listado a seu vizinho.
   Este, um magricela alto, ampla calvície e óculos de lentes grossas, retrucou com uma voz fanhosa:
   
— Só surdo não escutou. Será que foi terremoto?   — Terremoto que nada. Olha ali atrás. Está vendo?
O magricela espremeu os olhos por trás das lentes.
   
— Que luzes serão aquelas?
   
— Como vou saber? Até parece que explodiu um posto de gasolina!
   Uma moradora do outro lado da rua intrometeu-se:
   
— Acho que a minha televisão pifou... Diacho! Logo agora, na parte mais emocionante do filme... Droga! Quem pagará o prejuízo?
   Ninguém respondeu.
   Outras pessoas saíram, e mais outras, e mais outras...
   Uma multidão se formou nos quintais, calçadas e ruas. Apesar do horário avançado, várias delas dirigiram-se em direção às luzes estranhas. Os “fogos de artifício” ainda iluminavam o céu, porém, em menor número agora. Outros grupos foram se formando e convergindo ao local do impacto, vindo dos bairros circunvizinhos, aumentando as fileiras. Alguns iam de carro, a maioria foi a pé. Pareciam pequenos duendes atrás do pote de ouro no final do arco-íris. Eu, apesar de todo o cansaço, da fome, dos ferimentos, acabei me juntando a turba, pegando carona com um sujeito que nem conhecia, em um velho Volkswagen.
   
— Caramba! — exclamou ele. — Nunca ouvi nada parecido. Meu avô esteve na guerra e acordou sobressaltado, pensando que havia retornado ao passado, às trincheiras. Ele me disse que somente uma bomba de enorme poder destruidor poderia ter feito a terra tremer daquele jeito. Três vidros de minha casa se quebraram!   — Não creio ter sido uma bomba — respondi em meio a um bocejo, ao mesmo tempo em que procurava limpar o sangue das mãos. — Eu vi a coisa cair. Acho que foi uma espécie de avião...
   
— Barbaridade!... Vamos rezar para você estar errado... Ah! Como é o seu nome? Eu me chamo Eno.— Eno?— É... Como o sal de fruta..— Meu nome é Roberto.— Falou, Beto. Vamos lá!
   Levamos mais ou menos meia hora para chegar ao local, num misto de curiosidade e mal pressentimento. Normalmente, faríamos o trajeto em cerca de dez minutos, porém, essa noite o tráfego aumentara consideravelmente, principalmente nas proximidades do epicentro. Todos queriam saber o que havia acontecido, sem esperar pelo noticiário matinal. Havia algo de mórbido nisso, como aquelas pessoas a observar fascinadas uma briga de rua ou um acidente de trânsito. Era um dos lados obscuros da natureza humana, e nem chegava a ser o pior.
   A queda ocorrera em uma região arborizada, perto das montanhas Macridi, umas das raras áreas que, por enquanto, escapara à gana imobiliária. Antes assim, caso contrário, as dimensões da tragédia seriam muito maiores. (Tempos depois, cheguei a conclusão de que a queda em uma área despovoada não fora obra do acaso.) Focos de incêndio persistiam aqui e ali. Muitas árvores e arbustos foram queimados; muitos troncos, derrubados, obstruindo o caminho. Deixamos o Volkswagen atrás de uma fileira de carros. Mal conseguíamos respirar à medida em que nos aproximávamos a pé do centro do desastre. Quando faltavam uns duzentos metros, separamo-nos um do outro. Não foi intencional. Chegou um ponto em que não havia mais iluminação pública, nenhuma claridade, exceto a da Lua e, agora, alguns fachos de lanterna. Estava escuro. Muita gente se atropelava. Muitos pés pisoteavam pedras e folhagem morta. Sons de galhos sendo partidos vinham de toda parte. Murmúrios, respirações tensas, movimentos arrastados.

   Cheguei a perguntar-me o que estava fazendo ali. Por que não tinha ido para casa tomar um banho, jantar, dormir, repor-me para o dia seguinte que não se mostraria menos cansativo? Eu seria tão mórbido quanto aqueles outros aparentavam ser? Procuraria alguma forma de conforto na desgraça alheia? Não pude responder. Senti-me conduzido por aquele impulso, feito um trem desgovernado, um entulho arrastado pela corrente. Somente seguia o curso, incapaz de voltar-me contra ele nem de encontrar um remanso.
   Finalmente, suado e sujo, atingi o local. O cenário era de absoluta destruição. Era difícil não tropeçar em algo, um pedaço de tronco, alguma rocha, qualquer coisa. Os “fogos de artifício” – ou fossem lá o que fossem – tinham parado. Havia uma enorme cratera fumegante. O chão ao redor da borda tinha se elevado e ainda estava quente. Vapores coloridos subiam, tênues, condensando-se rapidamente, formando uma névoa rasteira. Não vi destroços de metal ao redor, corpos ou qualquer outro indício indicando a queda de um aeroplano. Agradeci por isso. As pessoas que haviam chegado primeiro formavam um anel de vultos fantasmagóricos ao redor da cratera. Ofegante, aproximei-me cautelosamente delas. O calor era quase insuportável. Galhos e arbustos crepitavam. Algumas pessoas mais lúcidas e menos egoístas cuidavam de evitar a propagação das chamas. A maioria, entretanto, olhava de maneira fixa para o interior da cratera. Havia espanto, incredulidade, em seus semblantes. Aproximei-me mais. Não foi fácil: o terreno tornara-se mais íngreme e havia muita terra solta. Ainda estava quente, muito quente. O suor aumentava a cada passo. Sentia a camisa colada ao corpo. Já perto da borda, apurei a vista e, em meio à neblina, eu também vi.
   Foi como olhar para as profundezas de um abismo. O abismo dentro de cada um de nós. “Caldeirão do Inferno” não seria uma expressão descabida.
   E, no interior desse caldeirão, em meio ao nevoeiro, um objeto de aparência metálica, todo prateado e de grandes dimensões encontrava-se parcialmente destruído e enterrado no solo calcinado. Como parte de sua estrutura conseguira sobreviver a tão violento impacto era um mistério. Usar o termo “estrutura” de imediato levaria a conclusão de ser algo artificial, desenhado e construído por mãos inteligentes – ou algum apêndice de função similar -, todavia, naquela ocasião tanto poderia ser uma espécie de aparelho quanto algum tipo de ovo, ou até um geodo desconhecido. Poderia ser qualquer coisa e nenhuma delas. Ninguém sabia e sequer conseguia pensar com clareza. A maioria olhava boquiaberto, hipnotizado, enfrentando a alta temperatura para satisfazer a própria curiosidade. O perigo era enorme: o centro da cratera ainda deveria estar tão quente quanto chumbo liquefeito. Se alguém pisasse em falso e escorregasse para o seu interior... As dimensões daquilo eram comparáveis as de um navio pesqueiro, daqueles que se viam no porto de Santos ou saindo da Boca da Barra, em Itanhaém, aonde minha família costumava ir nos finais de ano, antes de meus pais se separarem. Seu formato era o de um cilindro com as extremidades arredondadas, uma drágea gigante. Sua superfície era aparentemente lisa, sem quaisquer sinais de portas ou janelas, bem como de estruturas metálicas semelhantes a asas, antenas, radares, etc. Havia rachaduras provocadas pelo impacto, mas nada podia ser distinguido através delas, fosse pela distância ou pela alta temperatura que fazia o ar ao redor bruxulear. A visibilidade era ainda dificultada não só pela baixa luminosidade, mas pela fumaça e pela névoa que emanava da cratera. Várias pessoas haviam levado lanternas, mas seus fachos eram insuficientes. O que permitia ver o objeto com alguma clareza era o luar e, principalmente, um brilho fraco emanado dele próprio. As cores alternavam-se como em um arco-íris: vermelho, alaranjado, amarelo, verde, azul, anil, violeta, vermelho, alaranjado... Um ovo, mesmo alienígena, poderia fazer isso?
   Olhei para os lados. Alguns traçavam comentários sobre a natureza do objeto. Faziam-no em sussurros, como se suas vozes pudessem perturbar algo que não devesse ser perturbado 
— semelhante a se falar baixo dentro de um cemitério.
   Vi o rosto de um homem velho avermelhar-se, alaranjar, amarelar... Ele respirava profundamente, com dificuldade, olhos muito abertos. Parecia uma criança frente a uma inusitada descoberta. Eu mesmo sentia meu coração bater rápido, preso de uma grande excitação. Alguns sujeitos, mais impetuosos, queriam descer, mas a temperatura elevada não permitia. Se bem que, no fundo, deveria ser só bravata para tentar impressionar um amigo, um estranho, ou, mais provavelmente, algumas jovens.
   As cores foram se modificando com rapidez crescente. A expectativa também foi crescendo em idêntica proporção.
   Vermelho, alaranjado, amarelo, verde, azul, anil, violeta, vermelho, alaranjado, amarelo, verde, azul, anil, violeta...
   A névoa abriu-se por um momento ao redor da coisa. Notei que o solo ao redor também refletia seu brilho, parecia liso, polido.
   Quem conversava se calou.

   Olhares atentos.
   Expectativa.
   Sibilo.
   Houve um som abafado de ar sendo expelido, como se um velho sarcófago estivesse sendo aberto. Um “ooohhh!!!” partiu da multidão, fazendo coro àquele silvo. Alguma coisa havia ocorrido, mas o nevoeiro retornara, não permitindo ver nitidamente. Foi preciso esperar cerca de dez minutos. Rajadas de vento percorreram a região. A névoa dissipou-se, não de todo, mas o suficiente.

   Então...   — Uma abertura! — gritou alguém. — Abriu... Olha lá!
   Um murmúrio de espanto ondulou através da multidão.
   Eu vi.

   Não era uma rachadura como as que já tinham na superfície do objeto. Era regular, pouco acima da camada de neblina. Ovo algum seria quebrado assim. Pensei em correr dali, porém, foi o pensamento de uma fração de segundo. Sabia que não sairia, que as pernas não obedeceriam. Era como estar preso ao olhar de uma serpente.

   Ao meu lado, percebi com asco que o velho babava pelos cantos da boca. Emitia uns grunhidos esquisitos como se fosse um animal encurralado. De alguma maneira e cada qual ao seu modo, fomos tomados por sentimentos e reações primitivas. De um canto nas sombras, alguém chorava.
   Repentinamente, mais de uma pessoa percebeu um movimento vindo do fundo da cratera. Daquela abertura surgiu algo. Um novo murmúrio percorreu a multidão, desta vez mais alto. Gritos.
   
— Ali! — apontou alguém.
   Mais gritos. Grupos agitaram-se. Um dos valentões, que havia pouco fizera menção de descer, perdeu o equilíbrio e quase caiu, porém, foi salvo por uma mulher de meia-idade. Toda bravata se foi, e ele desapareceu na multidão.
   Surgiu, por fim...
   ... a criatura.
   Uma figura, um ser humanoide, envolto em um tipo de escafandro prateado, semelhante aos usados pelos bombeiros quando entravam no fogo. Só que o escafandro do ser era mais justo acompanhando os contorno de seu corpo. Ele era baixo, medindo talvez um metro e meio de altura, com a cabeça desproporcionalmente maior se comparada a de um ser humano, e as pernas desajeitadamente mais curtas. Nenhuma parte do ser era visível, ele era todo prata cambaleante.
   As pessoas olhavam assustadas e incrédulas as óbvias tentativas da criatura em sair da nave. Meio que rastejando, ela rolou e caiu com um baque abafado no terreno fervente. Seu corpo sumiu em meio às fumarolas. Quando conseguiu erguer-se, ficou visível apenas do peito para cima – ou algo que poderia ser chamado de peito.
   Aos tropeços, afastou-se na nave. Escorregou. Surgiu outra vez.

   Tentou escalar a cratera. Então, extraordinariamente, deu-se conta da presença dos curiosos mais acima, na borda, que a tudo observavam. Acenou freneticamente. Emitiu sons fracos e agudos, como um rádio antes de ser sintonizado. Esse estranho som, embora de baixa intensidade, penetrou profundamente em meu cérebro. Foi como se percorresse todos os seus recantos, vasculhando, sondando; como um grito na nave de uma catedral vazia. Sacudi a cabeça, incomodado pela comichão que estava sentindo. Reparei nos outros ao redor, e vi que estavam sentindo o mesmo.
   Mais gente chorou.
   Outros gritos.
   Alguns fugiram.
   Todos ficaram sem saber o que fazer, como que congelados no tempo, um vasto iceberg humano.

   Algo de inacreditável, de grandioso, embora trágico, estava acontecendo diante de todos nós; algo que ultrapassava a capacidade de compreensão do indivíduo comum e até daqueles que se julgavam mais espertos, mas, principalmente, algo de urgente precisava ser feito.

   A criatura escalava desesperadamente a cratera, dificultada pela terra fofa e quente. Seus movimentos eram diferentes, hesitantes, talvez estivesse com dor. Fazia lembrar um alpinista prestes a atingir o cume do Everest, e cujo último cilindro de oxigênio esgotara-se.
   Vermelho, alaranjado, amarelo, verde, azul, violeta, vermelho, alaranjado, amarelo, verde, azul, anil, violeta...
   Algo precisava ser feito.
   Alguém tinha que ajudá-lo. Gostaria de dizer aqui que eu fui esse alguém, porém, não fui. Eu estava tão amedrontado quanto qualquer um ali. Tão estupidificado quanto o mais estúpido dos presentes. Meu lado primitivo fez-me agir com uma mentalidade de cardume, querendo só perder-me em meio a multidão. Que outro o fizesse, e não eu. Desde criança, eu sempre fora o último a ser escolhido nas aulas de Educação Física na hora de formarem os times. Um dos alvos preferidos de trotes e apelidos de mau gosto. Eu só queria ficar invisível. Mas também queria ver. E via que alguém precisava tomar uma atitude.
   Então, naquela noite quente de primavera, em um subúrbio da zona leste de São Paulo, alguém tomou:
— Matem o monstro! Matem o monstro! — foi o grito que ecoou na escuridão, nas montanhas, por entre as árvores e arbustos calcinados.
   Outras vozes fizeram-lhe eco.
   
— Vamos matar o monstro!
   Uma corrente elétrica percorreu a horda, como se esta fosse desperta de um sono profundo. Transformou-se em uma entidade coletiva, um enxame de abelhas africanas. Emoções represadas afloraram. A maioria passou, então, a acotovelar-se na beira da cratera, atirando pedras, troncos e tudo o que estivesse a mão.
Senti-me empurrado, amassado, pisoteado. Uma cotovelada no meu estômago, vinda só Deus sabe de onde, tirou-me todo o ar. Ondas de dor afogaram meu grito de protesto a meio do caminho. Meus olhos lacrimejaram. Mãos oportunistas vasculharam meus bolsos. Meus cadernos voltaram a esparramar-se, porém, sem chance de alçarem voo no meio daquela gente.
   Os sons agudos continuavam. Um milhão de mosquitos alvoroçados dentro da mente.
   Um tiro ecoou, depois outro e mais outro. O maldito que trouxera o revólver descarregou-o completamente.
— Acertei! Acertei! — gritou o miserável, triunfante, em meio aos gritos de aprovação de vários e o silêncio estupefato de poucos.
   Infelizmente, não consegui avistá-lo na multidão difusa daquela noite, muito menos saber seu nome. Valeria a pena registrar para a história o nome do facínora. Não que isso fosse, viesse ou venha adiantar muito...
   Eu havia me arrastado até próximo a um tronco chamuscado.

   Respirando com dificuldade, imundo, ainda sentindo muita dor e com algumas escoriações, tentei recompor-me da melhor forma. Olhando para a borda da cratera, vi os vultos fantasmagóricos ao redor daquela fraca claridade em rápida mudança de cores. Por um breve instante, pareceu-me estar presenciando um sabá de bruxos e demônios da velha Europa, dançando ao redor de um caldeirão infernal, cozinhando criancinhas, pulando e gritando em perdida histeria. Não foi uma comparação das mais justas. Muitas mulheres idosas e solitárias, que viviam com seus animais, suas ervas medicinais e alguma eventual excentricidade, foram tachadas de feiticeiras, perseguidas, torturadas e assassinadas por gente que se julgava santo. Gente como a que eu, agora, observava, movido por semelhante estupidez e crueldade; a mesma mentalidade de gado, a imitar o seu próximo no estouro da boiada..
   Ao menos disso, eu não participei. Se carreguei uma culpa, foi a de nada ter feito para evitá-lo. O julgamento e a sentença virão em breve. Para a infeliz criatura das estrelas, não fez a menor diferença.
   Do interior da cratera vieram sons. A princípio um som agudíssimo, depois outro e mais outro. Feriram meu cérebro mais do que meus ouvidos. Um objeto rolou: o corpo. Gritos de júbilo partiram da turba. O alternar de cores tornou-se mais frenético; e a luz, mais intensa. A temperatura começou a subir rapidamente.
— A coisa tá queimando! — berrou alguém. — Tá queimando!
Houve um princípio de pânico. Instintivamente 
— mentalidade bovina ainda em funcionamento , as pessoas correram.
   Algumas caíram e foram pisoteadas. Folhas mortas esvoaçaram. Galhos secos foram partidos. Vi boquiaberto pequenos relâmpagos surgirem da cratera como se fossem pernas de uma tarântula fantástica, tateando, procurando. Uma bolha de luz alaranjada foi emergindo aos poucos, formando uma cúpula incandescente. O calor era abrasador e estava aumentando. Arrastei-me de lá o mais que pude. Automóveis partiam. Pedestres, em meio ao empurra-empurra, atropelavam-se. Os relâmpagos intensificaram-se, acompanhados de trovões. Um odor elétrico misturou-se ao cheiro de queimado. Repentinamente, uma coluna de luz azulada subiu para o céu, rasgando as nuvens, perdendo-se na escuridão entre as escassas estrelas. Durou, talvez, uns cinco segundos, depois sumiu, sugado às profundezas da noite, levando consigo a abóbada alaranjada, os relâmpagos e os trovões. Retornou a escuridão e o silêncio.
   O interior da cratera estava em brasa, emitindo fraquíssimos fiapos vermelhos.

   O odor de eletricidade pairava no ar, misturado a outros cheiros.

   Eu não passava de uma concha vazia. A casca de uma cigarra que nunca soubera cantar. Respirei fundo diversas vezes. O fedor era pavoroso, nauseante. O peito doía. As pernas doíam. As mãos ardiam como nunca. O estômago reclamava.
   As pessoas remanescentes, recuperadas do susto, estavam curiosas, mas não puderam se aproximar.
   
— O que houve?   — Não sei... Derreteu tudo.

   
— Consegue ver algo?
   
— Está muito quente. Vou subir nesta árvore...
   
— E então?   — A cratera está brilhando por dentro. Mas o disco-voador... não está mais ali! Nem aquela coisa. O piso está brilhando. Ficou escuro, mas está brilhando...
   Vindo de longe, escutei as sirenes. As viaturas da polícia, ambulâncias e bombeiros não tardaram a aparecer, ainda que tivessem vindo tarde demais, como toda cavalaria.
   Coincidência ou não, o tempo mudou repentinamente. Nuvens cobriram o céu e um temporal desabou sobre todo o lugar.

   A polícia militar isolou a área aos berros. Todas as testemunhas do evento – as que puderam arrebanhar, pelo menos 
— foram obrigadas a voltar às suas casas, após fornecerem seus dados pessoais, documentos e endereços. Nos dias, semanas e meses que se seguiram, foram intimadas a prestar depoimentos.
A última coisa de que me recordo é a de estar sendo carregado. Desnecessário dizer o quão preocupada ficara minha mãe 
— e a merecida bronca que levei mais tarde , principalmente ao me ver naquele estado e trazido por uma ambulância. Caí rapidamente em um sono profundo, todavia, nada tranquilo. No sonho, cenários estranhos desfilaram diante de mim. Um outro mundo feito de prata, cristais e máquinas estranhas, muitas máquinas. O zumbido insistente não queria sair de dentro de minha cabeça. Parecia, ainda, estar vasculhando.
   Quando acordei, vi-me em meu quarto. Tudo parecia ter sido um sonho ruim, exceto pelas marcas trazidas no corpo. E a dor. Se eu tivesse corrido a maratona, não iria sentir-me em pior estado.
Por mais que me contrariasse, foi impossível comparecer a aula seguinte. Lastimei a perda dos cadernos e apostilas, bem como dos meus documentos pessoais na carteira furtada.
   Logo pela manhã, o rádio informou sobre estranhas luzes surgidas nas montanhas Macridi.
   
— “Os cientistas informaram tratar-se da queda de um pequeno cometa” — disse a repórter. — “Indagados sobre os boatos a respeito de uma nave prateada e um homenzinho brilhante, responderam não saber de nada. Em tom irônico, acrescentaram que, provavelmente, tudo não passava de ilusão de óptica ou alucinação em massa. Opinião idêntica tiveram com respeito aos raios e luzes misteriosos, e as explosões subsequentes. Um dos cientistas chegou a mencionar um caso semelhante ocorrido na Sibéria, em 1908, quando o choque de outro cometa foi confundido com um acidente envolvendo um hipotético veículo de origem extraterrestre. Só uma dúvida persiste, e a qual não puderam, até o momento, explicar: por que todo o fundo da cratera encontra-se endurecido, coberto por uma espessa camada de obsidiana? As pesquisas prosseguirão. Assim que os cientistas concluírem seus estudos, farão uma nova declaração oficial à imprensa...”
   
— “Ilusão de óptica”? “Alucinação em massa”? — falei comigo mesmo. A quem querem enganar?
   O zumbido voltou forte, fortíssimo. Apertei a cabeça o mais que pude, sentindo contínuas pulsações de dor. Estática.

   Simultaneamente, o rádio começou a emitir estalidos estridentes.    Eu quis gritar, mas a voz não saiu. Felizmente, continuava deitado.
   Então...
   ... a voz surgiu.
   Estranha, profunda, vinda de enigmáticos abismos da mente e do espaço. Abismo... novamente o abismo. E ela falou de dentro de mim para dentro de mim, através do rádio:
   — Por favor... Ajudem-me! A nave irá explodir... Corram! Corram! Ela sofreu avarias... Explosão solar.... Eu venho em paz...
   O rádio calou-se.
   O zumbido sumiu.
   Senti um grande alívio, contudo, não era completo. Havia um profundo sentimento de mal-estar, de remorso, em meu peito.

   Eu venho em paz.
   Algo que eu carregaria para sempre.
   Um grande vazio surgiu em mim.
   “Que explicação trivial as ‘otoridades’ darão para essa misteriosa voz no rádio?”, pensei. “Ventriloquismo coletivo?”
   De concreto, uma certeza: tínhamos nos transformado no monstro que julgáramos combater.
   Nos dias que se seguiram, precisei correr atrás da segunda via de meus documentos, desaparecidos desde aquela noite, assim como das matérias perdidas no cursinho. Tudo me pareceu irreal. A normalidade tornou-se insólita.
   Ah, sim, precisei prestar depoimento, como os outros. Obrigaram-me a assinar uma declaração juramentada, onde me comprometia a não mais tocar no assunto, por envolver a segurança nacional e coisas do tipo. Nunca tiveram êxito em calar por completo os boatos, perdidos em suas infindáveis tramitações burocráticas. Melhor sorte teve a aura de maluco reservada àqueles que insistiam no assunto, de modo que, aos poucos, as próprias testemunhas obrigaram-se a se calar.
   Um mês depois, os cientistas informaram que a superfície vítrea fora provocada pelo calor do impacto com um meteorito, ao invés de um cometa. Não forneceram maiores detalhes, muito menos sobre a ausência de fragmentos. O bólido foi batizado de Nhatumani, em razão deste ser o nome da rua mais próxima à colisão. A área toda foi isolada para dar continuidade aos estudos. Um conjunto de laboratórios foi construído nas proximidades, onde vozes estrangeiras foram ouvidas com frequência. Muito mais tarde, excursões de turistas foram permitidas desde que sob rigorosa vigilância, “para evitar acidentes”. Fizeram até um conjunto de bilheterias.
   Visitei a cratera.

   A essa altura eu já tinha prestado o vestibular. Por um desses milagres inexplicáveis, conseguira passar. Engenharia.
   Uma plataforma fora construída para permitir a visão do alto.          Uma cerca metálica de cada lado da plataforma impedia qualquer acesso direto ao terreno pelo público. Instalaram câmeras por toda parte. Encontrei pessoas que haviam estado lá naquela noite, incluindo aquele sujeito do Volkswagen com o nome de sal de fruta, Eno. Apesar da proibição, tentei conversar com ele a respeito, mas fugiu de mim como o diabo da cruz. Nunca mais o vi.
   Observei o fundo da cratera. Estava muito escuro e brilhante. Era dia. Não havia mais a neblina. Tentei reviver aqueles momentos fatídicos em minha mente: as poucas estrelas, o perfume das damas-da-noite, o estrondo, a correria, as chamas, o alienígena, o tiro, a turba enlouquecida.

   E a mensagem no rádio.
   Algo importante ocorrera naquela noite. A revelação... Não apenas uma revelação vinda do Cosmo, trazendo vida, conhecimento e fatalidade. Não somente uma perda irreparável que poderia ter reduzido em séculos, senão em milênios tudo aquilo que julgávamos saber sobre a Ciência em geral e o Universo em particular. Uma vida inocente, talvez a consciência mais inocente na Terra naquele instante, fora tirada. Aquela noite houve para mim uma revelação tão ou mais importante do que tudo isso:

   A revelação do próprio Homem.
   E não haveria Iluminismo ou Renascimento que trouxesse a glória humana de volta. Se existira uma criatura no centro do Universo, ela cintilara prata. Nós criáramos Deus a nossa imagem e semelhança; por isso, Ele nada fizera pelo alienígena. O filósofo tinha razão: Deus estava morto. Talvez por isso aquele enlouquecera...
   ... ou, pelo contrário, teria sido um castigo?

***

   Fecho momentaneamente o olho que abrira.
   Estou cansado, exaurido. Muitas noites insones e, quando durmo, eu vejo. Mundos de prata e cristal. Escondo o rosto nas palmas das mãos. Tolice, não há onde se esconder. Nunca houve.
   Por que escrevo tudo isto? Por que estou quebrando meu juramento? Porque ele tornou-se irrelevante agora. Ademais, depois de três décadas, quem irá se importar?
   Observo o reflexo de meus cabelos grisalhos como um pano de fundo na tela do computador, a medida em que escrevo. Os olhos cansados e as rugas são como escrita antiga sobre o pergaminho do meu rosto.
   Tudo é irrelevante agora.
   Este escrito também o será, caso não haja mais ninguém para lê-lo.
   Por quê?
   O zumbido retornou. Mais forte do que nunca, muito mais numeroso. Um verdadeiro enxame de abelhas atravessando os neurônios. Talvez mais... Sonhei noites seguidas com centenas, milhares de “colmeias” a atravessar o espaço. Cidades flutuantes.        Máquinas, milhões delas. Prata e cristal.
   O zumbido fez rádios e televisores queimarem. Milagrosamente, o computador manteve-se intacto. De tempos em tempos, uma palavra repete-se em sua tela e por toda a rede mundial. Preciso tomar muito cuidado, fazer o “backup” de minuto a minuto.
   Uma palavra.
   Vinda da escuridão longínqua do céu.
   O arauto do destino.
   O destino de todos nós.
   Uma palavra...
   “RETALIAÇÃO”
   Naquela noite perdida no tempo, olhamos demais para as profundezas do abismo.

   Agora, o abismo estava retornando.
   Ele olha para dentro de nós.

***

NOTA: A presente história foi originalmente publicada na coletânea independente “Pequenas Portas do Eu”, em fins de 1987. Agora, vinte e seis anos depois, dei a ela uma nova face. Coincidentemente, eu também tinha vinte e seis anos naquela época. Não terei a presunção de dizer que melhorei a história, como se o tempo tivesse me aperfeiçoado enquanto autor, a exemplo de uma garrafa de vinho. Fiquei muitos anos sem me exercitar na escrita. Se há uma certeza no decorrer de todos esses anos, é apenas a de que eu fiquei mais velho... De qualquer maneira, procurei acrescentar maiores detalhes à história segundo a minha visão atual. A inclusão do poeminha “Passos no Outono” foi um artifício ao qual não pude resistir, por mais deslocado que tenha ficado. Escrevi-o quando tinha vinte anos. Nunca tive jeito para poesias, nada que fosse além de um “Batatinha quando nasce...” Porém, não quis perder essa chance de preservá-lo 
 e até divulgá-lo  por razões puramente pessoais, nostálgicas.

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