Hugo Corrêa - Alter Ego (Conto)

ALTER EGO
Conto de Hugo Corrêa

- Este é o seu Alter Ego, senhor. Tenha a bondade de assinar o recibo.

Antônio abriu a caixa e recuou, espantado. Lá estava ele, os braços junto ao corpo, completamente nu e sem movimento. Se a posição ereta não fosse anormal numa pessoa que dorme, ele teria tentado acordar o androide, tão fiéis à vida pareciam a cor da pele, as pequenas rugas começando a aparecer perto dos olhos, os lábios finos, a testa alta. O cabelo liso estava penteado com cuidado, como o do seu semelhante humano.

Pegou a caixa de controle e, seguindo as instruções, colocou o androide em movimento. Andava devagar e naturalmente, sem nenhum dos movimentos grotescos tão típicos dos autômatos do passado. Era justamente como se possuísse realmente ossos, músculos, nervos e os órgãos de um ser vivo. Antônio dirigiu-o nas ações elementares - sentar-se, vestir-se, acender um cigarro, coçar o ouvido. "Se os proprietários de androides desejam tirar deles a máxima satisfação" - dizia o manual de instruções - '' devem, primeiro estudar muito cuidadosamente a si mesmos, pelo menos em sua mímica, gestos, modo de andar, etc".

Antônio, já perito em manejar a sua cópia, colocou a cabeça dentro do capacete de introjeção. Durante um momento, seus olhos piscaram na escuridão. Mas, assim que ligou a alavanca ocular, recobrou o uso dos olhos. A sala de estar parecia como se ele a estivesse vendo de outro ângulo. O que estava acontecendo? Simplesmente, ele estava começando a ver pelos olhos do androide. Alter Ego estava de pé no meio da sala, voltado para a porta, piscando naturalmente. Os instrumentos movimentavam as pálpebras sintéticas simultaneamente com as de Antônio. O homem apertou um botão e a cópia voltou-se. Podia ver-se a si mesmo, sentado na cadeira, a cabeça escondida no capacete, os controles no joelho. Como o canal auditivo estava funcionando, não havia dúvida de que estava agora no meio da sala; podia ouvir os ruídos da rua e os que ele mesmo fazia quando mudava de posição na cadeira de braços. E cheiro. Como se respirasse através de Alter Ego. Os odorofones lhe davam a sensação de ar respirado em todos os lugares simultaneamente. Experimentou a voz da sua duplicata; assim que Alter Ego abriu a boca, Antônio ouviu-se falando do meio da sala.

- Como vai, Antônio? Você renasceu. Não se sente como um peixe num tanque cuja água acaba de ser trocada?

Antônio ouviu a sua própria voz com satisfação. Fez Alter Ego caminhar pela sala, andar até a janela e, inclinando-se para fora, olhou a cidade que brilhava sob o céu ardente, coberto de helicópteros. Tudo parecia mais bonito do que quando ele usava os próprios olhos; o céu estava mais azul e mais luminoso, os arranha-céus mostravam cores mais alegres e brilhantes. Sim, Alter Ego estava-lhe mostrando a face verdadeira das coisas. As sensações que recebia através da sua cópia faziam-no sentir-se, subitamente, em paz com a humanidade. Na sua imaginação, renasceram as emoções da juventude, as memórias que o tempo tinha lentamente apagado, deixando apenas imagens desbotadas, voluntária ou involuntariamente esquecidas. Mas agora sentia-se dominado por uma coragem estranha e um desejo de relembrar-se. Podia contemplar soberanamente a sua vida passada, fazer voltar pensamentos, aspirações juvenis, e a maneira pela qual ele tinha, pouco a pouco abandonado aquilo que mais amava para conquistar uma posição.

- Lembra-se de quando queria ser ator e representar O Imperador Jones? Como você passava semanas inteiras, com a cabeça nos monólogos dele? Como namorou Valentina, a moça, que estudava com você na escola dramática e que o encorajou, porque ela tinha fé em você?

Alter Ego falava com voz clara, ressonante, com gestos de um homem habituado ao palco. Acendeu um cigarro, tragou fundo, depois soltou um filete de fumaça. Parou na frente de um retrato de Antônio, em cima da escrivaninha, sorriso satisfeito no rosto, rodeado de fotografias, pequenas notas, quadros de avisos.

- Não há nada de mal em vender pasta de dentes, especialmente quando é um produto bom e fabricado corretamente. Afinal de contas, isso tem até uma função social; garante dentes brancos e hálito agradável. Você pensou, alguma vez, em aplicar a suas próprias atividades as palavras de Jones a Smithers. "Não é falar grande que faz um homem ser grande - enquanto ele faz os outros acreditarem nisso?" Você o conseguiu como vendedor. O problema foi que você nunca acreditou nas grandes coisas que o grande vendedor Antônio dizia.

Alter Ego tragou fundo, e através da nuvem azulada examinou o homem na cadeira, cujo rosto estava escondido pelo capacete. Maravilhas da eletrônica! Os papilofones lhe trouxeram o sabor e o leve calor do fumo.

- Fumar por controle remoto - que coisa fantástica para os homens práticos de hoje, que estão ansiosos para fazer todas as coisas, sem se arriscarem demais! Consegue o mesmo prazer que o fumante, sem correr nenhum dos riscos. É a satisfação do princípio hedonístico.
Alter Ego abriu um pequeno armário, muito antigo e voltou-se para Antônio com um sorriso indefinível.

- Uma peça de museu, como tantos homens. Muitos homens de hoje não são apenas peça de museu, afinal de contas? Para começar, são incapazes de satisfazer suas próprias aspirações, eles param todos na metade do caminho. Você não é exceção: queria ser ator, e acabou vendendo pasta de dentes porque isso dava mais dinheiro. Você abandonou Valentina, porque ela era simples, não tinha ambições. Você tinha amigos, amigos de verdade, pessoas com quem podia conversar sobre qualquer número de coisas inúteis. Inúteis? Seus novos conhecidos somente entendem a linguagem da finança. "Isso dá dinheiro?" perguntam eles quando você inocentemente tenta tirá-los de suas poltronas, mostrando-lhes o seu mundo interior onde as aspirações estão começando a enferrujar, fatalmente, resignadamente, como metal corroído pelo óxido. Você aprendeu a falar como eles, porém. Não melhor do que eles! Não há níveis naquele mundo.

Alter Ego terminou de fumar, atirou o cigarro com um gesto teatral e enfrentou Antônio, apontando acusadoramente.

- E agora, a sua cópia mecânica irá fazer o que você não teve coragem de fazer com as próprias mãos.

O androide parou, sem se mexer, olhando o capacete silencioso. Um silêncio denso inundou a sala. Os olhos de vidro cintilaram. Lentamente, Alter Ego se voltou para o armário aberto. Seu rosto endureceu. Tomou uma pistola, examinou-a criticamente e avançou para o homem com estranha solenidade, como se atravessasse um templo durante uma cerimônia.

- O homem é o supremo inventor. Ele fez estas armas para matar homens, e fez cópias para executar a sentença em si mesmo.

Depois de uma pausa curtíssima, acrescentou, secamente:

- O círculo está fechado - e cuidadosamente mirou a pessoa sentada na cadeira.

FIM

Trad. de Renato J. Ribeiro
Magazine de Ficção Científica, Nº3, 1970.

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